Nota do Filme :
Assistir à atuação de Anthony Hopkins é sempre uma experiência única. Já senti um arrepio na espinha com medo de Hannibal Lecter em O Silêncio dos Inocentes, acreditei na genialidade de Robert Ford em Westworld, e agora me emocionei completamente com Anthony, um senhor que vive uma realidade em que ele não tem controle sobre o próprio tempo.
Sir. Anthony Hopkins provoca diversas emoções no telespectador em Meu Pai, vivendo um homem com idade avançada que mora em Londres, em seu flat, sozinho, tentando negar qualquer ajuda que venha de sua filha, Anne, interpretada por Olivia Colman. A trama se desenvolve no apartamento de Anthony, marcada pelas idas e vindas de Anne, de seu marido e da cuidadora, tudo isso com toques de apreensão e angústia.
No começo, há uma cena em que acreditei estar assistindo a um filme de terror, já que nada fazia sentido e Anthony tinha um olhar de puro desespero. Somando a cena confusa com a trilha sonora e o plano fechado em seu rosto, focado puramente em suas reações ao ambiente que lhe era estranho, fiquei completamente apreensiva, esperando alguma reação extrema.
Em que pese o filme não se encaixe no gênero terror, isso não significa que o que a personagem vive não seja aterrorizante – é, e muito! O terror que experienciei é real para ele: em um momento vive em seu próprio apartamento, mas logo em seguida já está morando na casa de sua filha; em uma cena ele conhece sua nova cuidadora e sapateia para impressioná-la, mas já na cena seguinte ele não reconhece mais a filha e nem a cuidadora. O que é real? O que é imaginação? Não sabemos, e ficamos tão confusos quanto ele.
A noção de tempo se esvai gradativamente ao longo da trama, na medida em que Anthony começa a perder com mais frequência o seu tão estimado relógio. A simbologia é certeira e facilmente identificável pelo espectador, que acompanha a personagem em sua busca frustrada pelo controle do próprio tempo. É curioso observar que, em dado momento, ele chega a acreditar que teve seu relógio furtado pelo marido de sua filha. Ele acredita que as pessoas à sua volta estão sempre tentando trapaceá-lo, roubando seu tempo sem que ele perceba.
A angústia vivida por Anthony é a mesma do espectador, que a vivencia sob seu olhar. Essas idas e vindas, essas verdades que não são verdades, colocam quem está assistindo na mesma situação da personagem principal, sem saber o que é presente, o que é passado ou o que é fruto de sua imaginação. A sensação é de que vivemos o mesmo dia todos os dias, cada vez mais confusos.
Além da vida daquele que vive com a demência, podemos experienciar também a daqueles que convivem com ela. Anne é uma personagem que passa o filme se dividindo entre as suas necessidades e as de seu pai, ora priorizando o seu bem-estar, ora deixando o pai aos cuidados de enfermeiros e médicos em uma casa de repouso e indo viver com seu novo marido em Paris.
A vida dos que rodeiam o paciente é muito difícil, e vemos isso muito bem retratado por Anne, pela cuidadora, pela enfermeira e pelo médico que cuidam dele. Como não há maneira ideal para lidar com um acontecimento desses, cada um reage de uma forma distinta: uns com raiva, outros com completa devoção e ainda há quem reaja com um misto dos dois sentimentos.
Ver aquele que amamos com uma doença degenerativa traz uma sensação de impotência, o que gera até certa culpa em quem se dedica aos seus cuidados; quem cuida muitas vezes se sente na obrigação de minimizar os danos causados pela demência em seu ente querido, o que nem sempre é possível, como vemos nas inúmeras tentativas de Anne de se conectar com seu pai, a maioria delas sem sucesso.
Além da dificuldade de comunicação, há também os momentos de fúria de Anthony, que começam sempre quando ele se sente enganado e traído. Estes rompantes acabam machucando todos à sua volta, o que torna a convivência ainda mais difícil. Segundo a trama, a realidade é cruel e não há meio-termo: ou a doença controla a vida daqueles que convivem com ela, ou o acometido é deixado em uma clínica especializada, para que os familiares, enfim, não tenham sua vida direcionada pela doença o tempo todo.
O sentimento é o da mais pura angústia, tanto do doente quanto dos que convivem com ele. Os esquecimentos geram a necessidade de constante visita ao passado, seja ele recente ou remoto, o que acaba por muitas vezes cansar e até irritar os que ainda têm a memória em dia. Por mais doloroso que seja de assistir, a realidade de muitos que convivem com doenças relacionadas à perda de memória é essa, e a escolha do roteiro foi de mostrar exatamente como ela é.
O que toca o telespectador é que isso pode acontecer com qualquer um de nós, e acontece, de fato, em muitas famílias. Confesso que antes de começar a escrever esta resenha fiquei mais de uma hora olhando para a tela do computador, sem palavras, sem ar. Esse filme mexe em questões muito caras, como a sensação de segurança, de estabilidade e também de autocontrole, coisas que são perdidas quando não se tem noção do tempo, como acontece com a personagem principal.
É impossível passar ileso a esse filme, já que a idade chega para (quase) todos, e é inevitável que nos coloquemos em seu lugar. Ainda que a velhice seja algo esperado, a senilidade não é. A realidade das pessoas que são acometidas pela doença nunca foi tão bem retratada, de forma não-óbvia e crua, como vemos aqui.
Com 6 indicações ao Oscar de 2021, Meu Pai emociona do começo ao fim, tanto pelas atuações quanto pelo roteiro, e ainda mais pela edição. Vale a pena passar pela emoção de viver, ainda que de forma fictícia, a experiência desafiadora que a demência provoca em um ambiente familiar.
Sou muitas em uma só. Como já dizia o Gato da Alice: We’re all mad here. 🙂