Nota do Filme:
Em Manchester à Beira-Mar conhecemos Lee Chandler (Casey Affleck), um zelador sisudo e mal-humorado, que cuida de 4 prédios simultaneamente em Boston, cidade onde mora. Após uma ligação inesperada, Lee se vê obrigado a retornar à sua cidade natal, Manchester, onde tem que encarar a vida e as pessoas que deixou para trás. A partir disto, conhecemos seus familiares, amigos e ambientes que costumava frequentar quando ainda morava lá, e começamos a entender um pouco mais deste homem que vive a fase da raiva do luto de forma permanente em sua vida.
O comportamento de Lee, que por vezes é apático e outras raivoso, nos faz encará-lo, em um primeiro momento, simplesmente como uma pessoa que faz questão de ser desagradável em todas as oportunidades que tem de conviver com outras pessoas. Contudo, conforme conhecemos sua história, vemos que, na verdade, o personagem esconde uma outra camada por baixo de toda essa agressividade: a sua dor. Para lidar com ela, ele agride, ignora, xinga e rebate de forma hostil cada tentativa de conexão que fazem com ele.
Outro comportamento marcante é não medir nunca as palavras, (principalmente quando é um assunto delicado como, por exemplo, a morte). Seu jeito de lidar com a vida, no geral, é sendo bruto e “falando verdades na cara das pessoas”, como se machucá-las diminuísse um pouco da sua dor, mas, no fim das contas, não a diminui em nada. É evidente que a autopunição é muito pior do que a sentença, também feita por ele, mas Lee não poupa esforços quando o assunto é se recriminar pelas atitudes que teve em momentos difíceis da sua vida.
Este filme me fez pensar em como às vezes somos duros demais com nós mesmos e como isso é injusto. Essa autoflagelação só traz uma falsa sensação de justiça (e repare que aqui eu digo nós porque eu tenho certeza que você, caro leitor, também já se puniu além da conta alguma vez que cometeu um erro, assim como eu também já fiz, e assim como Lee faz no filme). É importante trazermos esse paralelo para a vida real, pois é justamente isso que faz esse filme tão bom: o toque agridoce de realidade.
A relação de Lee com seu sobrinho, Patrick (Lucas Hedges), só melhora quando ele aprende a falar na mesma língua do tio: com agressividade. A partir do momento que Patrick o enfrenta e impõe a sua vontade, ele é finalmente ouvido. Assim, ambos tentam superar juntos a dificuldade que é perder alguém querido e conviver com o vazio que a pessoa deixa, tanto em casa quanto nos pensamentos; embora nenhum dos dois saiba muito bem como se expressar, eles acabam se ajudando, e, aos poucos, criam uma nova rotina, na tentativa de preencher o espaço deixado por Joe (Kyle Chandler), pai de Patrick e irmão de Lee.
Quando entendemos o porquê Lee se separou de sua esposa, Randi (Michelle Williams), entendemos também porque ele é assim, bruto e arrogante com todos à sua volta: ele ainda não conseguiu se recuperar nem da primeira tragédia que acometeu a sua família no passado, que dirá dessa que acabou de acontecer. Quando Randi tenta conversar com o ex-marido sobre a perda que compartilharam, ele a deixa falando sozinha no meio da rua. Lee tenta a todo custo não tocar no assunto e finge estar tudo bem, quando claramente não está.
Todos à sua volta conseguiram reconstruir suas vidas após viverem o luto, mas Lee não consegue reunir forças para encarar seus monstros e seguir em frente, o que é muito doloroso de assistir. No caso dele, o trauma foi tão profundo que ele deixou de reagir a vários tipos de estímulos da vida, passando por ela de forma anestesiada e apática, o que mudou não só a sua vida, mas também a daqueles que convivem com ele. Ter Lee por perto é ser lembrado constantemente do ocorrido, é andar em círculos sem nunca conseguir superar e realmente seguir em frente – e é justamente por isso que ele afasta as pessoas, para tentar poupá-las de seu eterno sofrimento e poder seguir em seu limbo sem que ninguém o force a superar enquanto não quiser.
No fim das contas, cada um lida com as suas questões à sua própria maneira, e nem todos são capazes de superar alguns traumas. Em Manchester à Beira-Mar vemos pessoas lutando para superar suas dores, lidando com seus dramas familiares e, principalmente, com o luto, este que se materializa de forma única para cada um, e ele só vai embora se o deixarmos ir. Quando a dor faz morada é difícil não depender mais dela, e isso é mais comum (e confortável) do que imaginamos.
O roteiro sensível de Kenneth Lonergan foi merecidamente premiado no Oscar de 2017, juntamente com o prêmio de melhor ator para Casey Affleck. O longa foi aclamado na temporada de premiações do ano de seu lançamento, sendo considerado um filme tocante e que retrata muito bem essa resistência em seguir em frente que toma conta de algumas pessoas. É uma obra excelente e, caso haja dúvidas, nem um pouco melodramática, que pode ser assistida na plataforma da Amazon Prime Video.
Sou muitas em uma só. Como já dizia o Gato da Alice: We’re all mad here. 🙂