Crítica | A Criança (L’enfant) (2005)

Não existe uma fórmula mágica para se fazer cinema. Uma das maiores belezas da sétima arte são as infinitas possibilidades que um criador pode utilizar para concretizar o seu projeto. Partindo de filmes grandiosos, com inúmeros efeitos especiais e dublês, e passando por películas completamente independentes, filmadas apenas em uma mesma sala, com um ator e uma câmera de iPhone. Tudo isso é cinema. E não há nada de errado e nem de “mais certo” em nenhuma dessas possibilidades. Conforme dito e imortalizado pela lenda Gláuber Rocha, para se fazer um filme, “basta apenas uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.

Nascidos na Bélgica durante a década de 60, a dupla de cineastas Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne parece concordar 100% com essa afirmação. Para os irmãos, não é necessário um gigantesco investimento para se contar uma boa história. Inclusive, durante uma entrevista concedida no ano de 1999 para o portal IndieWire, após ser questionado sobre os seus planos de, um dia, fazer uma grande produção, com uma verba maior e mais equipamentos, Luc afirmou que fazer filmes de baixo orçamento “é uma casa em que gostamos de viver. Filmar é como estar em casa, você tem que estar confortável a todo momento”.

Considerados com um dos maiores representantes do bom cinema europeu, os Dardenne foram responsáveis por obras excelentes, como Le Gamin Au Vélo (O Garoto de Bicicleta) (2011) Deux jours, Une Nuit (Dois Dias, Uma Noite) (2014), filmes que inclusive os levaram a subir ao palco de Cannes para receber o troféu do Grand Prix e a premiação do júri ecumênico, respectivamente. Como se já não fosse o suficiente, outros cinco filmes da dupla – além dos dois citados anteriormente – foram indicados à Palma de Ouro, maior honraria do circuito. Porém, apenas Rosetta (1999) e L’enfant (A Criança) (2005) se sagraram vencedores.

Bruno (Jérémie Renier) e Sonia (Déborah François) formam um casal de jovens que vive em condições precárias e na dependência dos roubos cometidos pela pequena gangue do garoto. Ao dar a luz ao seu primeiro filho, Sonia deve lidar com os desafios de criar e sustentar uma criança e com a compulsividade e imaturidade de seu namorado, que quer arranjar uns trocados de todas as maneiras possíveis – mesmo que isso custe a guarda do pequeno Jimmy.

Como já é marca registrada dos diretores, toda a película é filmada com uma câmera sempre muito próxima aos personagens, em primeiro ou primeiríssimo plano. O recurso, sempre muito bem utilizado, ajuda na identificação e na imersão dos espectadores com a história. Além disso, planos sequência e a ausência de trilha sonora completam os aspectos técnicos. Assim como na vida real, conseguimos apenas escutar os diálogos e os sons de background dos ambientes visitados pela dupla.

Aqui, o que interessa a Luc e a Jean-Pierre é contar uma história sobre pessoas. Isso, claro, só é possível graças às excelentes atuações de Jérémie e Déborah, que transmitem um sentimento de união e química que acaba passando por uma carga dramática que muda completamente o rumo da história para ambos. Temos aqui um belo estudo de personagens, visto que conseguimos identificar com clareza as mudanças e os impactos das decisões nas características e crenças dos dois.

No início, a dupla é retratada como jovem, inconsequente e apaixonada. Sonia literalmente corre atrás de Bruno com o filho em seus braços – o pai não se preocupou em visitar o recém-nascido no momento em que veio ao mundo. Depois de comprar um carrinho de bebê, ambos aproveitam o tempo livre juntos para fazer sexo, brincar de pega-pega, guerra de comida e para gastar até o último centavo em coisas supérfluas e exageradas. Como toda história real, existe o momento em que coisas burocráticas tem que ser resolvidas. No caso, a certidão de nascimento do pequeno Jimmy. É aí que o rumo da vida de todos se perde. Bruno afirma que “vai levar a criança para passear” e dá um jeito de lucrar com o nascimento do filho sem o consentimento e nem a ciência da mãe.

De uma maneira muito inteligente, os Dardenne mudam o foco do filme. A partir daqui, vemos a história quase que exclusivamente pelo ponto de vista do garoto. Acompanhamos suas tentativas de consertar os seus erros, seus roubos necessários para manter a sua alimentação e a sua dura realidade de morador de rua que nutre uma relação completamente fria e distante com sua mãe. Porém, em nenhum momento devemos sentir pena ou se compadecer pelo jovem. O roteiro muito bem escrito e estruturado não nos deixa esquecer nada do que aconteceu e nem das decisões questionáveis tomadas por Bruno. Entretanto, ainda conseguimos enxergar motivos para torcer por sua recuperação. Com uma coerência absurda, a dupla de diretores – que também roteiriza e produz a obra – consegue amarrar a história em um desfecho digno de uma explosão de sentimentos – seja na tela ou fora dela.

L’enfant é apenas mais um dos vários filmes obrigatórios do cinema europeu. Depois de um denso estudo de personagens, uma aula de filmagem e um roteiro inteligente, os irmãos Dardenne apenas confirmaram o que todos já sabiam: sabem contar histórias como ninguém.