Uma quase incompreendida declaração de amor
A originalidade e autenticidade de Wes Anderson fica evidente desde os seus primeiros passos no universo da sétima arte. Seu primeiro curta, “Bottle Rocket (1994)” já lhe rendeu elogios, um contrato e um longa, que mais tarde abririam portas para o diretor nos deleitar com seu estilo próprio, excentricamente peculiar e muito diferenciado de contar histórias. Por este ângulo, destacam-se seus sete curtas feitos até o momento, que dizem muito mais sobre a originalidade do autor do que seus próprios longas, mas foram filmes como “Rushmore (1998)”, “Os Excêntricos Tenenbaums (2001)”, “Moonrise Kingdom (2012)” e “O Grande Hotel Budapeste (2014), que acarretaram milhões de fãs, prêmios e um status de intensa criatividade e competência para o roteirista e diretor texano.
Um dos filmes que não comentei acima e que vale ser citado é; “O Fantástico Senhor Raposo (2009)”, onde em uma animação, Anderson consegue aprofundar temas sobre a humanidade de uma forma bem peculiar e inteligente, com base em uma história infantil. Fora o fato que a animação é uma reprodução cinematográfica no estilo peculiar de Anderson de dirigir, seja na fotografia impecável, do seu estilo invejável de falar através de paleta de cores, das emoções passadas por uma trilha sonora sutil, ou na sua excentricidade de enquadramentos simétricos, e roteiros afiados, um tanto desconcertantes, com diálogos ácidos de humor sucinto e irônico.
Entretanto, como diria Lavoisier, “no mundo nada se cria, tudo se transforma”, e essas palavras marcam a carreira de vários diretores que beberam na fonte de diretores consagrados, mais antigos, que nos trouxeram estilos completamente únicos. Para quem conhece produções japonesas fica evidente, que a principal influência de Wes Anderson está dentro do cinema nipônico, pois que Anderson faz referências à muitos diretores consagrados em suas obras, entre as quais se destacam as referências a Yasujiro Ozu.
Quando ouvimos falar de enquadramentos simétricos, ângulo aberto, foco frontal em diálogos – dando maior proximidade do espectador com a personagem. Câmera baixa, postada ao chão. Foco no vazio contemplativo. Sequência circular. Múltiplos enquadramentos. A câmera quase não se movimenta. Paleta de cores que nos despertam emoções. A fotografia como uma pintura pitoresca e emblemática. Dramas familiares cotidianos e diálogos secos e objetivos. Estamos falando do cinema meticulosamente detalhista, brilhante e extremamente original de Yasujiro Ozu e por esse motivo, não é à toa que, Wes Anderson quer fazer uma homenagem ao cinema japonês nesse seu novo trabalho. Entretanto, mesmo acreditando na genialidade do diretor americano, tenho a convicção de que, quando se trata de Wes Anderson, ou você ama ardentemente sua obra, ou simplesmente odeia.
Ele nos desperta isso. Sua excentricidade ao desenvolver uma trama simples, é apaixonante, e a forma como ele faz isso; é genial. Os personagens de Anderson sempre soam de uma frieza aparente, de uma sociopatia latente, puramente calculistas em seus objetivos, mas que no fundo, são cheios de alma e emoções sufocadas, como se isso os afogasse. A excentricidade de Anderson conquista, mas ao mesmo tempo pode irritar e até mesmo confundir, devido a tamanhas referências.
Seu novo trabalho, Isle of Dogs, vencedor do Urso de Prata de melhor direção, se passa em um futuro retro, onde a “gripe canina” parece estar fora de controle, fazendo com que os melhores amigos do homem sejam perseguidos e vítimas de desconfiança. Logo uma medida drástica, como o exílio de todos os cachorros para uma ilha distante do continente, é compreendida como sendo a única solução para a cidade de Megasaki se livrar da doença daqueles cães. Essa é a premissa que vemos em Ilha de Cachorros e aos poucos a história de Atari (Koyu Rankin), um menino de 12 anos, sobrevivente de um grave acidente onde perdera os pais, nos é contada.
Após o acidente que o deixou órfão, Atari é adotado por seu tio distante, o inescrupuloso prefeito Kobayashi, que durante a recuperação do menino, designa Spots Kobayashi, seu cão guarda-costas, para a guarda pessoal e proteção de Atari. Anos depois, quando a lei de exílio canino entra em vigor, o prefeito Kobayashi envia primeiro Spots (Liev Schreiber) para o exílio, como exemplo aos demais cidadãos da cidade. A aventura é iniciada com Atari caindo de avião na “ilha do lixo”, onde todos os cachorros foram descartados e nisso embarca em busca de seu melhor amigo com o auxílio de Rex (Edward Norton), Duke (Jeff Goldblum), Boss (Bill Murray), King (Bob Balaban) e Chief (Bryan Cranston), cachorros saudosos de seus donos, cansados de estarem naquela ilha e que simpatizam com a causa de Atari e decidem ajudá-lo. Entretanto Chief parece ser o único a relutar sobre a ideia de ajudar o pequenino humano.
A história é muito bem construída, e de forma inteligente, aos poucos, nos vai dando mais informações sobre os personagens, sobre a nova sociedade canina construída na ilha, e sobre a própria trama. A trilha sonora é peculiar, nos passa um clima de um velho filme de samurai, no estilo Kurosawa, quando as coisas esquentam. Os próprios cortes e closes em momentos de tensão, fazem referências sucintas a Kurosawa, mas que muitos podem deixar passar, por já ter visto esse tipo de técnica em outros filmes de Anderson. Esse é o fato também da grande declaração de amor de Wes Anderson para a obra de Ozu, onde em todo seus filmes Anderson coloca elementos da técnica utilizada por ele, mas em aqui, as técnicas de Ozu estão presentes em todos os momentos, seja na câmera baixa, no enquadramento frontal nos diálogos, do seguimento horizontal dos planos em sequência, a câmera parada, entre outros recursos supracitados.
Nessa sociedade canina pós-apocalíptica, Anderson mistura a clássica jornada do herói, com conspiração política anti-canina, articulada por amantes de gatos, com elementos místicos, como um oráculo, protagonizado inteligentemente por um Pug, Oracle (Tilda Swinton), que consegue interpretar o que assiste na televisão. A obra tem romance, aventura, ação e uma particularidade narrativa bem diversa.
O humor de Anderson é sagaz e pontual, nos faz rir sem muito esforço, aliviando momentos tensos com um humor seco. As vozes originais intercalam sagazmente entre inglês e japonês. O que nos é dito em japonês fora dos anúncios traduzidos pela televisão, não são traduzidos ao espectador. Os detalhes da obra são impecáveis e fantasmagoricamente assustadores para o stop-motion, pois vemos ratos correndo ao fundo no cenário, carrapatos passeando pela pele dos cachorros, enxergamos os pelos dos animais reagindo ao vento e objetos presos a pelagem dos animais, tudo entro de uma realismo absurdo, mesmo sendo ao mesmo tempo algo completamente irreal, e nesse ponto parabenizamos toda a equipe do longa, e principalmente a Tristan Oliver, diretor de fotografia, por uma das suas melhores obras.
A dinâmica da história é agradável, as reviravoltas na trama não são apelativas, e a parte emocional funciona bem, principalmente nas releituras de cenas clássicas do cinema japonês.
Por uma pequena parte da crítica americana, que se diz especializada na sétima arte, Anderson foi acusado de apropriação cultural, e foi fortemente criticado por sua obra, pois entenderam que o diretor utilizou de elementos estereotipados da cultura japonesa, como pano de fundo e relés cenário para sua animação. Primeiramente, acredito que a comunidade nipônica deveria ser consultada sobre o caso de apropriação cultural indevida, antes de tirarem conclusões precipitadas e de espalharem acusações infundadas na mídia tendenciosa e sensacionalista.
Em segundo, de fato, Anderson usa elementos estereotipados da cultura nipônica em seu filme, mas isso não é a homenagem que Wes Anderson se propôs fazer, ele apenas introduziu elementos da cultura japonesa em seus cenários, algo ingênuo, pois a verdadeira homenagem para a cultura japonesa é o filme em si.
Poderíamos ir além, pois toda a obra de Anderson respira o cinema nipônico, toda sua obra possuí elementos do clássico cinema japonês e essa homenagem nada mais que uma declaração de amor de Anderson, para com uma cultura cinematográfica riquíssima, que foi muito importante em sua formação.
A despeito destas críticas, o filme em si é excelente, comove e funciona bem, além de ser esteticamente agradável e simetricamente perfeito. É um filme calculista que nos passa emociona.
Aconselho que o leitor assista antes algumas obras de Kurosawa e Ozu para apreciar Ilha de Cachorros em sua totalidade. Acreditem: a experiência será completamente única.