Crítica | Hereditário (Hereditary) [2018]

Nota do Filme:

Já me disseram de diversos ângulos, gêneros e modalidades, que quanto mais uma obra permanece na sua cabeça com um único pulso de sua manifestação (séries trapaceiam aqui pela periodicidade), mais ela é capaz de desafiar o seu julgamento final. Com uma mistura sagrada dos filmes de horror contemporâneo, Hereditário une o terreno ainda pouco visitado da insanidade ao trato técnico do iniciante diretor Ari Aster. O que é possível extrair da experiência de visitar a macabra história dos Graham, é que mesmo já tendo nascido no olho da tempestade de filmes assim, conseguiu aproximar como poucos sua história ao literal do termo ‘aterrorizante’. Com um visual afiado, sem escrúpulos ou exageros, Hereditário abraça o tangível duvidoso da linha do sobrenatural e da loucura, acabando por tocar no pior entre todas as questões que nascem dessa mistura: aquilo poderia acontecer?

De cara, a morte já é anunciada no filme com a banalidade de uma família envolta na perda de sua vó e matriarca. Os próprios personagens são apresentados dentro do próprio contexto de desapego e luto. As personalidades, ainda que galgadas nisso, saem facilmente entre cada diálogo no passo certo que o roteiro entrega. Em poucos minutos é possível identificar um pai centrado, uma mãe rachada por um passado não muito bem resolvido, um jovem que não olha para o futuro e uma criança estranha. Para este último membro, fica a tocha do misterioso, elemento que guiará o espectador para as próximas resoluções enquanto observa uma família fragmentada e isolada — ainda que tímida — ter como primeiro desafio a tarefa de se recompor.

A decisiva etapa de contar a história de Hereditário vem quando um conflito brutal e súbito atinge os Graham acabada  a fase de apresentação de personagens. É nesse momento que o storytelling encontra na trilha sonora de Colin Stetson o elemento capaz de crescer na tela uma apreensão sempre conflituosa do que se vê e do que se esconde. Apesar de bem posicionadas, as trilhas aqui assumem o lugar de todos os sustos comerciais de filmes parecidos, incluindo, em terrível totalidade, os de como outros Ari Aster. O filme não se utiliza de resoluções sonoras para o mais fortes jumpscares. Ainda que tenham a função mínima de prospectar a sensação de pânico de algo curto como um susto, o longa aqui dispensa isso para delegar a trilha sonora como orquestra para perseguições e outras situações mórbidas, mas de igual interpretação. Em Hereditário, a forma que o mal assume para afligir uma família é covarde e vagarosa, quase cuidadosa. Tudo para que um clímax escale o suficiente para um salto que só acontece na resolução, entregando assim algumas das respostas para as maiores questões.

O mistério que desabrocha a partir da morte introdutória da mãe (avó na família) de Annie (Toni Collette), evolui com as muitas pistas que o espectador traz dos núcleos da história. Estas pequenas tramas paralelas não se distanciam muito, mas ainda podem ser identificadas com o definitivo isolamento de cada personagem. O filme usa alternativas aos elementos-clichê do horror moderno em cooperação para escrachar o que realmente representam. A corrosão da estrutura familiar, as convicções suprimidas e a terrível sensação de que tudo está perdido e nada de bom pode intervir, apresentam Hereditário como uma grande aula sobre como realmente trabalhar um clichê de forma criativa, algo totalmente arquitetável e potencial em diretores estreantes.

A indiferença com que a mão do diretor trata os personagens é importantíssima para que os acontecimentos não sejam exatamente empáticos por parte da audiência. Embora qualquer um dos personagens tenha suas estranhezas e direcionamentos, nenhum deles é totalmente convicto do que quer ou faz. Existe uma influência silenciosa trazida pela terrível sucessão de eventos que mais do que mudar, força decisões quase sempre desesperadas de cada um dos Graham. Para esta fase, os personagens secundários não têm qualquer significado senão o de existir em um plano distante da isolada casa interiorana. A cidade, a luz, o som e a esperança, são em Hereditário pontos inalcançáveis. Tudo pode e vai piorar, não importa o quão boa seja uma janela de oportunidade que amorteça isso o quanto pode.

O oculto como um dos elementos-clichê citados anteriormente, não toma aqui as proporções amedrontadoras ou surpreendentes. A forma como se entrega e aparece, não pode ser classificada de outra forma senão como apressada e comprometedora. Não existe a subjetividade ou a estranheza que desafie mais uma vez o questionamento do que é sonho, delírio ou realidade. Cada vez que o sobrenatural é cutucado com a vara curta da curiosidade dos personagens, ele desafia a balança desses três elementos com uma extrema força que direção e roteiro erraram severamente em calcular. Isto fica declarado dada a maneira como a trama se sustenta até então: mistério, dúvida e drama. Em algumas passagens, como a do jantar em família ou de Peter (Alex Wolff) ao acordar durante a noite, lembram muito a própria abordagem de O Babadook, de Jennifer Kent. Enquadramentos, luz e imagens que enganam tornam essa comparação ainda mais inevitável.

Hereditário estreia desafiando a compreensão total do espectador ao que está acontecendo. Sem usar muito e rasgando comodidades e caminhos comerciais dentro de seu roteiro, Ari Aster opta por uma história original, curta e direta capaz de chamar para dentro da tela os que comprarem a sua ideia. O elenco tem uma entrega satisfatória, mas não são os completos responsáveis por tecer Hereditário para o que culmina em forma em sua conclusão que divide opiniões. Podendo ter uma duração um pouco maior para explorar as demais respostas ao mistério de sua trama, ainda assim é bem fechado ao seu jeito. O longa é uma contribuição inegável para a indústria de estreantes no gênero. Se o mal for hereditário, é esperado que a sua qualidade também seja.