Crítica | Eu Me Importo (2020)

Nota do Filme:

Em um pseudo diálogo moderno com o gênero noir, marcado por personagens que questionavam a moralidade e muitas vezes para legitimar um discurso, Eu Me Importo (2020), dirigido por J Blakeson, é um filme de comédia satírica e thriller criminal cujo verve é a dualidade da realidade, dos valores, personas e posturas. O longa lançado pela Netflix apresenta Marla Grayson (Rosamund Pike), uma personagem de má índole duvidosa que ascende socialmente ao roubar dinheiro de idosos enquanto sua guardiã legal. Ao lado da parceira e esposa Fran (Eiza Gonzalez), elas aplicam os golpes com a ajuda de figuras legitimadas e institucionalizadas, como médicos, juízes e policiais, para subverterem a lei a seu favor.

O que elas não esperam é que entre um golpe e outro, uma cereja, o que elas chamam da vítima perfeita, poderia colocar em risco todo o esquema: interpretada por Dianne Wiest, Jennifer Peterson tem 70 anos e é mãe de Roman Lunyov (Peter Dinklage), chefe da máfia russa em um esquema de tráfico de jóias com mulheres como mulas, contrastando diretamente com o conluio da dupla. Sob essa ótica irônica, o filme propõe-se então a satirizar a sociedade moderna, em veemência o sonho americano, a partir de uma noção classicista e totalmente amoral que resulta em um duelo entre dois iguais. A premissa, embora instigante, logo se transforma em uma sequência fracassada que é potencializada pela atuação vigorosa e cínica do seu elenco; o roteiro irregular e as escolhas estilísticas do diretor anulam o longa-metragem em si mesmo. 

Ao comando de Blakeson, que também assina o roteiro, o filme começa com um voice-over que cumpre com a função de apresentar não apenas o argumento como também as motivações da personagem: “Não existem pessoas boas. Jogar limpo é uma piada criada pelos ricos para manter o resto de nós pobres. Há dois tipos de pessoas no mundo: as que pegam e as que perdem. Predadores e presas. Leões e cordeiros. Meu nome é Marla Grayson e eu sou uma leonina.” Visto que trata-se de uma história cuja moralidade cristã podem se sobrepor à experiência do filme, a escolha por trazer uma narração em primeira pessoa dirigida ao espectador foi essencial para que fosse possível um interesse mínimo, pelo bem ou pelo mal, na trajetória da personagem e no discurso que ela defendia: uma diatribe à sociedade meritocrática e capitalista, com a qual muitos podem se identificar.

Ao ouvir o discurso de denúncia da hipocrisia dos ricos, do jogo de poder e ascensão social, o público já está inserido no pensamento heterodoxo da personagem. A ideia de usar um crime que não é considerado hediondo e acontece debaixo dos panos por meio legais como a veia crítica é genial, de modo a colocar em questionamento até que ponto as pessoas que chegaram ao topo foram honestas e se é possível existir alguém que consiga manter a postura de bom samaritano, desafiando o público a olhar para si mesmo, para suas próprias atitudes perante o almejo do sucesso financeiro e, portanto, social. 

Os primeiros momentos do filme nesse sentido são primorosos, justamente por conseguir sintetizar todo esse questionamento em uma direção sagaz com o uso de dispositivos tradicionais da linguagem cinematográfica: a mise en scene de Blakeson engloba todo o cinismo cômico e crítico através de uma imagem da protagonista de costas com foco no ouvido dela, na qual se pode ouvir a súplica do filho de um dos idosos que está sob os cuidados de Grayson, e que termina com ela ajeitando de forma sistemática os itens que estão na sua mesa antes do momento da sua defesa pessoal evidenciado por um close de seu rosto. Em apenas uma sequência de planos e movimento de câmera classicamente precisos, o diretor já consolida a imagem cartesiana de Marla, de uma mulher que não tem empatia nenhuma por ninguém a não ser por sua própria ganância e visão de mundo.

O triunfo da cena está exatamente na construção visual dessa virtude imoral, que está subentendida em cada detalhe do rosto e trejeito da atriz, em sintonia com a primeira fala da personagem já em cena. Ela aponta que, diferente dos parentes, ela não tem vínculo emocional nenhum e portanto pode lidar de forma muito mais coesa com todas as decisões que, até então, devem visar o bem-estar do idoso. Tudo isso é dito direcionado não para o adversário, aqui o filho, mas sim para um juiz, que representa durante todo o filme o sistema judicial, as leis que deveriam pautar a ordem social e a justiça plena. O fato do juiz endossar o discurso de Marla enquanto anula quaisquer questionamentos levantados pelo filho é a sátira e a realidade em jogo: a fácil manipulação do frágil sistema legislativo, que convém a ambos os lados. É aqui que ela também nos convence a seguir, por mais que nós não compactuemos, no caminho dela. 

Essa introdução do bem contra o mal e todas as intempéries duvidosas que permeiam e sustentam a sociedade é a sintonia entre o roteiro e a direção de Blakeson, cuja precisão vai se esvaindo assim como a força do texto no decorrer do filme. Em uma construção arquétipa dos personagens, o roteiro do filme não se preocupa em apresentá-los como algo além disso, permitindo-se que eles sejam apenas vácuos de outras figuras do mesmo gênero. Até mesmo quando trata-se de estruturas já vistas, é preciso que o filme apresente alguma característica que enriqueça esse personagem perante a trama em que está envolvido, mesmo que não seja algo extremamente profundo ou até mesmo original. Não é que o filme tenha qualquer pretensão em ser um estudo social, mas a superficialidade com os quais esses personagens são tratadas, principalmente Marla, vai contra toda a força que ele apresenta nos seus primeiros momentos e, tendo em vista que as situações nos quais são colocados carecem de qualquer complexidade narrativa, muito menos para sustentar a atmosfera que o thriller demanda, suas funções são apenas de garantir que o filme consiga chegar até o final.

Sem explorar a presença de dois personagens que representam a mesma face da moeda e se relacionam em total oblívio de que há regras sociais, em um mundo pautado por seus próprios ideais, o roteiro apenas usa-os como personagens de ações que nada têm a dizer sobre o conflito. Apesar de ainda me entreter, por diversas vezes me peguei desinteressada no que iria acontecer; tudo parecia muito solto e gratuito. A impressão que fica é a de que Blakeson não sabia por qual caminho perseguir, abandonou plots (me pergunto o que poderia justificar o filme renunciar a presença de Jennifer) e escolheu o caminho mais fácil, saturado de sequências de ação e comédia slapstick que beiram a caricatura dos próprios gêneros quando todo o tom dual do filme estava exatamente na sutileza do texto e da direção. 

O diretor não conseguiu encontrar um equilíbrio entre os dois tons, resultando em um filme quase que esquizofrênico, que não consegue compreender a si mesmo. E se no início há uma cumplicidade entre o roteiro e a encenação, que o mantém forte por uma boa parte da duração, subsequentemente o que é visto é uma estilização ineficaz do roteiro. Do que vale ser estético, se nada acrescenta narrativamente? É esse um dos grandes erros do filme, que abandona por completo as escolhas que antes o sustentavam. Percebe-se esse péssimo julgamento do diretor pelo fato de que o filme funciona muito melhor em cenas nas quais a ironia é o fio condutor direto, sem muitos dispositivos estéticos ou narrativos interferindo.

Não à toa um dos momentos mais fortes é quando há o encontro entre Marla e Dean Ericson (Chris Messina), o advogado de Roman, filmado em um clima desafiador, evidenciando a iminente explosão entre eles. A decupagem clássica aqui, de plano e contra plano dos rostos de cada personagem, como um jogo de pingue pongue, é eficaz na sua intenção de elucidar a angústia e a competição dos lados como também de elevar o roteiro e a atuação primorosamente ambígua da dupla em cena. O mesmo acontece na cena de encontro de Marla com Jennifer, que, minimamente drogada pelos remédios, participa de um jogo de insultos, mistérios e poder com a curadora. O exagero cromático e estilístico não são necessários. 

Nesse cenário superficial, não há muito no que se agarrar, visto que é um roteiro cujo foco não foi na construção dos seus personagens ou no simbolismo crítico que eles representam, mas sim no deslocamento deles em ambientes comuns, sem qualquer análise de suas atitudes e consequências. Aqui, embora não sejam exatamente originais, as sequências do roteiro, então, se transformam em meros clichês inverossímeis ao contexto, que nada dizem, a não ser pelo fato de que há um belo trabalho do diretor de fotografia. Esse esvaziamento da experiência com o conjunto da obra faz com que o filme se estabeleça em um lugar óbvio, onde nem mesmo a expectativa de quem será a queda é sustentada até o fim.

Obras desse gênero necessitam de um envolvimento com o espectador, é preciso que este se excite com o desenrolar dos fatos e destino dos personagens, independentemente, o que de fato não acontece aqui nessa jornada vívida. É possível identificar exatamente o momento em que não havia mais interesse nenhum pela história: para mim, foi uma representação clara de indiferença ao desfecho de Marla. Se ao menos a construção tivesse mantido o cinismo sutil da mise en scène do seu primeiro ato, a banalidade, às vezes risível, dos momentos de clímax ainda teriam tido um efeito envolvente. Nesse foco aos detalhes nus e crus de uma interpretação contida, de encenação sistemática e equilibrada, ao menos era possível captar peculiaridades da personagem, capazes de intrigar o espectador, que o roteiro em si não ofereceu. 

Ao se tratar de uma fábula moralista, o filme quer que o público decida por um lado e, devido às escolhas e soluções propostas para a obra, nem em relação a isso há muito para ser debatido. O pouco que o longa se propõe a revelar sobre os seus personagens é o suficiente para criar uma lógica de juízo de valor, pautada aqui por um roteiro que apresenta o mafioso russo enquanto um filho preocupado e a protagonista como extremamente impassível e apenas uma feminista de vaidade prepotente. É possível medir os crimes? Há diferenças? Quem é o verdadeiro criminoso? Sem dar chances para a sua protagonista, o diretor responde pelo espectador ao, numa tentativa de humanização, ilustrar a relação de mãe e filho através da ótica da emoção, tendo o sentimentalismo como o cerne a partir do uso de planos que, apesar do tom frívolo, ainda evidenciam o indivíduo e suas emoções, enquanto o relacionamento amoroso de Marla e Fran é retratado de forma estilizada e artificial em jogos de paleta e planos que não acolhem suas ações, distanciando o espectador das emoções trocadas pelo casal.

Intermitentemente, me questionei se o comprometimento de Marla com sua parceira era essencialmente pela relação ou pelos benefícios na profissão, algo que não transpassou a minha percepção da humanização de Roman. Da forma que ambas foram mostradas, havia sempre uma frieza entre elas que a câmera fazia questão de mostrar, fosse pelas cores, escolhas dos planos ou pelo tom da atuação, e que nunca refletia o que estava nas ações e diálogos do roteiro. Nesse sentido, há mais uma evidência da ausência do desequilíbrio da direção em saber tonar os momentos do filme em relação ao todo, resultando em um direcionamento da visão do espectador.

É um filme que, apesar das engenhosas performances, em destaque as de Rosamund Pike, Peter Dinklage e da veterana Dianne Wiest, ele não funciona e o abandono do jogo estilístico do primeiro ato enfraquece o roteiro já ordinário – embora funcional em termos de entretenimento -, principalmente quando levanta-se o gênero no qual ele está inserido: de nuances orquestradas. Trata-se de um roteiro que aborda insígnias de imoralidade, capitalismo e questões de gênero, mas que se perderam na demasia e ordinariedade. Em meio a tantas hipocrisias da sociedade, Eu Me Importo ao menos consegue se colocar em um altar moralista e, com certeza, uma grande maioria do público irá cultuá-lo. Afinal, o preço pela imoralidade é alto e deve ser pago. O prejuízo, no entanto, foi contra si mesmo e o filme acaba por se pautar em uma estrutura completamente antagônica ao que, inicialmente, havia proposto, reafirmando a deferência moralista cristã e hegemônica do homem, literalmente, acima de todos e, em especial, de todas; imoralidade por imoralidade, que vença a masculina. De que adianta, portanto, Marla Grayson se intitular uma leoa em meio às presas se o filme a trata como cordeiro em detrimento de si próprio?