Nota do Filme :
Dançar é uma atividade que demanda muito esforço de quem se dedica a ela, fora que serve como forma de expressão artística, socialização, conceito ou linguagem estética de arte corporal, possuindo inúmeros significados com as performances, seja de maneira individual ou coletiva. E, para os dançarinos e dançarinas, parece que surge uma aura que acomete a todos e eles apenas bailam seguindo o ritmo.
A nova odisseia de Gaspar Noé acompanha um grupo de dançarinos urbanos que se reúne em um isolado internato, nos anos 90, localizado no coração de uma floresta, para um importante ensaio. Ao fazerem uma última festa de comemoração, eles notam a atmosfera mudando e percebem que foram drogados quando uma estranha loucura toma conta deles. Sem saberem o por quê ou por quem, os jovens mergulham em um turbilhão de paranoia e psicose. Enquanto para uns parece o paraíso, para outros é como uma descida ao inferno.
Com isso, a cena inicial do longa indica qual a tônica que será adotada durante os seus frenéticos 93 minutos de projeção, e, após isso, é apresentado todos os personagens de forma bem ágil, conseguindo distinguir as particularidades de cada um na forma de uma entrevista.
Já no primeiro numero de dança, Noé estabelece qual o papel que ele quer que a audiência represente, ao optar por uma câmera estática que se movimenta levemente para cima, transformando a audiência em uma convidada da festa, cuja função é apenas observar, na qual todos estão cientes disso e continuam dançando normalmente.
Após os dançarinos começarem a fazer o uso da sangria batizada com LSD, Noé muda um pouco o tom da sua câmera, juntamente com a edição que, até então, possuía poucos cortes, convertendo-se em pequenos blecautes, dando a entender que a droga está começando a fazer efeito nas pessoas do ambiente, sendo equivalentes a olhos piscando, ficando mais rápida e mais brusca conforme as sensações vão ficando mais intensas.
Aliás, essa edição acaba servindo por estabelecer as relações entre os personagens sem que os mesmos precisem entrar em contato diretamente de quem estão falando ou olhando, apenas o corte de um núcleo para o outro esclarece. Isso ocorre porque Noé opta por uma câmera fixa, capturando os personagens em um único plano durante o começo do frenesi.
A fotografia, que intensifica ainda mais a trama, acaba sendo monocromática, dando grande destaque para o vermelho, característica comum dos filmes do diretor, porém se utilizando de outras cores como o verde, azul e amarelo. E, nesse caso, o vermelho se torna fundamental para representar todo o êxtase, erotismo e raiva que os personagens tem durante essa viagem ao inferno para alguns, enquanto que para outros é o paraíso.
Eis que durante o segundo número de dança do filme, Noé opta por colocar sua câmera vista de cima, dando ao espectador a percepção de que há um ser superior observando os dançarinos, como se estivesse a espreita, admirando os movimentos que estão fazendo no meio dessa catarse coletiva. Neste momento fica claro que a individualidade do ser é uma ilusão fugaz, e que todos acabam se tornando um só por causa disso, priorizando a entidade grupal que se forma devido a isso.
Nesse momento eis que a fotografia, em seu tom monocromático de vermelho, vai cobrindo todo o chão conforme a catarse coletiva da dança vai se intensificando. Simultaneamente, Gaspar Noé rotaciona a sua câmera em círculos de maneira sútil, a fim de querer hipnotizar sua audiência naquele momento.
Com isso, o diretor realiza uma grande sacada antes de subverter ainda mais as expectativas: colocar os créditos na metade do longa, resultando em uma separação do filme, como se o mesmo estivesse recomeçando após os efeitos do LSD se acentuarem em todos os membros da companhia de dança.
Logo após esse reinicio, a câmera ficará inclinada levemente para demonstrar que os personagens estão perdendo o controle de si, sendo que esse movimento se repetirá durante esse “novo” filme, em que Noé, durante um pouco mais de quarenta minutos sem cortes, utiliza uma câmera na mão para intensificar ainda mais essa estupefação na audiência.
A partir desse momento, é como se os personagens estivessem nascendo de novo, tendo essa oportunidade única de repensarem sobre sua própria essência, tornando-os mais voláteis a seguirem os próprios instintos, o que acaba causando uma histeria coletiva desenfreada, com certos requintes de crueldade.
Neste delírio descontrolado, apesar do elenco em sua grande maioria ser desconhecido, Sofia Boutella se destaca de maneira estupenda, mesmo com todos dançando instintivamente, ela se deixa tomar pela droga e abraça a sua loucura juntamente com a de todos ali presentes, fazendo com que lembre a personagem de Isabelle Adjani no filme Possessão (1981), dirigido por Andrzej Zulawski.
Após diversos conflitos apresentados pelo roteiro nesse momento, os personagens descobrem que não conseguem mais viver coletivamente, se tornando uma impossibilidade, fazendo com que ocorra ainda mais loucuras provocadas por essa bad trip , que se torna mais intensa para alguns, sendo que para outros o que importa é apenas dançar na pista.
Apesar de pessoas possuírem divergências umas com as outras, quando são tomadas por alguma intensa emoção ou por substâncias entorpecentes, acabam aflorando esses sentimentos, fazendo com que o ser humano surpreenda tudo e a todos, podendo ser da coisa mais grotesca a mais bizarra, e é exatamente essa uma das feridas que o filme cutuca.
E, quanto mais essa loucura aumenta, mesmo após diversos acontecimentos, Noé vira a câmera de cabeça pra baixo, enfatizando que o ápice da droga foi atingido, sinalizando para a audiência que, mesmo após isso tudo, morrer pode ser uma experiência excepcional dependendo do contexto, se utilizando de todos os elementos e fatos que ocorreram para ratificar essa visão.
Um ponto importante disso é o próprio roteiro que utiliza muito bem o título pois, devida a sua estrutura não linear, o espectador pode interpretar qualquer um dos momentos do longa como um clímax, dependendo unicamente da perspectiva da audiência sobre a narrativa.
Portanto, a dança é subjetiva, podendo ser utilizada para diversos tipos de representação, como a vida, a morte, a loucura e a sensatez. Talvez ela não tenha o seu significado compreendido naquele momento, apenas é admirada por mero deleite visual. Como Nietzche uma vez disse: “E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.” A grande dúvida é saber se nós somos os insanos por não compreender ou eles que são por dançarem?
Apaixonado por cinema, amante das ciências humanas, apreciador de bebidas baratas, mergulhador de fossa existencial e dependente da melancolia humana.