Nota do Filme:
O universo de Casa Gucci, novo filme do diretor Ridley Scott, é um dos mais excêntricos de sua filmografia, mas apesar de toda a cafonice, é uma trama que permite diversas e interessantes possibilidades. Para revelar os bastidores da família que detém um dos mais renomados impérios de moda da história, Scott não teve medo de assumir um estilo extravagante e novelesco. Contudo, mesmo que o espírito “camp” combine perfeitamente com o mundo de luxo irreal dos personagens, o filme sofre deslizes bastante significativos e o que poderia ter sido uma bizarrice consistente, se torna apenas uma bizarrice. Mas com seus méritos.
Baseado no livro homônimo de Sara Gay Forden, Casa Gucci se dedica a contar os diversos encontros e conflitos que aconteceram entre os anos 70 e 90 dentro de uma das famílias mais importantes da Itália. Em meio a um jogo de ganância, traição e vingança, os eventos culminaram na morte de Maurizio Gucci, herdeiro e diretor da marca, assassinado a mando de sua ex-mulher Patrizia Reggiani, que foi descoberta e condenada dois anos depois do crime.
Tão marcante para o universo da moda quanto o assassinato de Gianni Versace, o caso da família Gucci, cercado de intrigas, disputas contratuais e fraudes financeiras, é um terreno altamente frutífero para se desenvolver uma boa trama. E Scott se aproveita com louvor dessa grande novela para fugir (ainda que não o suficiente) das batidas tradicionais das cinebiografias que estamos cansados de assistir nos cinemas. A história dos Gucci, sobretudo do casal protagonista, é intrigante e altamente rocambolesca e o roteiro, a princípio, entende bem as delícias de se acompanhar capítulo a capítulo os desdobramentos de um romance tão improvável quanto o de Maurizio e Patrizia.
É então que o diretor abraça com empenho o potencial extravagante da história e faz da primeira metade de Casa Gucci um maravilhoso festival de irreverência e esquisitice em proporções muito semelhantes. Mergulhado numa energia caótica, o filme admite sua essência e essa autoconsciência conta diversos pontos a favor do projeto. Se toda a ironia e acidez que assistimos no início da história se mantivesse até o final, Casa Gucci poderia ter sido muito maior do que realmente é. Infelizmente, a mudança constante de tom e uma gordura desnecessária acabam minando muito do potencial do longa.
Seu grande erro foi ter se levado tão a sério. Justamente quando o público começa a engajar na loucura da família, o filme opta por trazer muitos pormenores dos negócios da marca e o foco acaba sendo desviado daquele que é o real charme de Casa Gucci: seus personagens. É interessante saber dos detalhes por trás da marca? Bastante, mas como o tempo é limitado teria sido bem mais coerente investir sem receios no entretenimento das fofocas de ricos e famosos. Ao invés disso, o filme prefere ter seus momentos sóbrios e durar quase três horas do que assumir de vez o espírito espalhafatoso e cativar sem entediar ninguém.
A verdade é que Casa Gucci tenta, mas nunca consegue atingir tudo aquilo que poderia. Apesar de brilhar em aspectos como maquiagem, figurinos e fotografia, o trio direção, roteiro e montagem, em certos momentos, parece completamente descoordenado entre si. Nascido num período conturbado dentro de um curto espaço de tempo, o longa iniciou suas gravações em março desse ano e fica nítido que boa parte da bagunça poderia ser ajustada caso houvesse um tempo maior de pós-produção. Existem aqui cortes bruscos, arcos importantes se encerrando rápido demais e muita gordura impedindo a trama de ser mais dinâmica. Na maioria das vezes até o caos se beneficia de um pouco de refinamento.
Mas se existem qualidades indiscutíveis em Casa Gucci, estas são as atuações, que certamente terão espaço nas premiações do ano que vem. De Lady Gaga a Al Pacino, o filme reúne estrelas da mais alta estirpe de Hollywood, todas incrivelmente dispostas a embarcar na loucura deliciosa que cerca a história da família. Jeremy Irons é um dos coadjuvantes que têm menos tempo de tela, mas sua participação como Rodolfo Gucci, pai de Maurizio, é marcante e merece reconhecimento. Enquanto Adam Driver dá uma interpretação tímida e contida de seu Maurizio Gucci, Al Pacino aproveita a ocasião para evocar seus papéis em filmes como O Poderoso Chefão e Scarface para compor o cativante Aldo Gucci, um empresário com ares mafiosos que rouba as cenas em que aparece.
Jared Leto é um caso a parte. No limite entre a genialidade e a estridência, sua caracterização exagerada, tanto nas feições quanto nos trejeitos, pode ser vista como a grande pedra no sapato do filme, já que destoa muito das demais e se torna problemática em algumas cenas. Por outro lado, seu Paolo Gucci é fundamental para fortalecer a veia cômica da história e reafirmar seu tom exagerado e caricaturesco.
Porém, não importa o quanto tentem, o quanto falem alto ou exagerem nos trejeitos, é Lady Gaga a estrela máxima de Casa Gucci. Se ainda restava alguma dúvida sobre o talento da cantora, é com Patrizia Reggiani que ela garante de vez seu espaço entre as grandes atrizes de sua geração. Sua personagem é, de longe, a mais bem desenvolvida e poderia facilmente sustentar um filme só dela, pena que não é o caso. O roteiro é astuto ao mostrar Patrizia não apenas como uma figura oportunista, mas também como uma mulher ambiciosa que busca uma vida melhor.
Na construção dessa personagem, a atuação de Gaga é fundamental para que o espectador evite simplesmente julgá-la e procure analisar os sistemas nos quais ela se emaranhou para, enfim, ser derrotada como vítima de um império dominado por homens. Se para o espectador fica impossível classificar Patrizia como boa ou má, isso se deve principalmente a atuação poderosa da atriz, que nos faz entender as motivações e simpatizar com uma criminosa. Aqui, uma vaga entre os indicados ao Oscar é quase uma certeza.
Casa Gucci, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (25), é um delírio de espírito caótico que poderia facilmente ter sido um divertido clássico escapista. Infelizmente, faltou tempo e foco para que o filme tivesse uma proposta mais consistente e alcançasse todo o potencial que tinha em mãos. Apesar dos pesares, as extravagâncias presentes na história, ainda que irregulares, além de deliciosas funcionam bem como uma crítica ao sistema cruel e prestes a colapsar que sustenta a aristocracia de famílias como a Gucci.
Jornalista viciada em recomendar filmes e revisora de textos recifense que vive escrevendo sobre cinema nas horas vagas.