Crítica | Cargo [2017]

Nota do Filme:

Quando o que Cargo é em filme teve sua primeira fagulha explorada no auge do pós-apocalipse de 2013, sua ansiosa jornada transitiva do curta-metragem premiado para o longa internacional foi ambicionada. Esse desejo não ficou só com Ben Howling e Yolanda Ramke, as duas mentes por trás da premiada produção que disputou o Tropfest australiano naquele mesmo ano. O público aguardou vigilante que o conceito virasse a quebra esperada para o que a indústria havia criado com o gênero em sua pouca rotatividade criativa. Um pai, condenado a morte certa por uma acidental mordida, encontra como única motivação final a busca por um novo guardião para a sua filha pequena. Simples e convidativo, Cargo se apresenta como uma tentativa de história curta contada com uma exploratória vagarosidade emocional.

Como uma justa adaptação melhor trabalhada, comparações ao curta original não podem ficar omissas. Ainda que o protagonismo de Martin Freeman ao encorporar Andy seja por vezes ofuscante, não deixa de lembrar as convicções paternas mais instintivas de preservar o precioso em meio ao condenado. É com essa filosofia que Cargo apresenta uma história sem complexidade e que não agride com o visual. Tudo é acessível a sensibilidade de qualquer um, mas a característica sacrifica o chocante pelo reflexivo em toda a sua duração. Essa discutível simplicidade sem dúvidas é a principal segregadora de opiniões para a qualidade final. Com ou sem ela, o filme não tem um visual notável ou um desenvolvimento muito mais que medíocre.

Há na estrutura do longa a certeza precisa da resolução. A moral no aparentemente embrionário cenário pós-apocalíptico do filme é tão imóvel quanto as engrenagens de suas reviravoltas. Na tentativa de recriar a emotiva viagem de um pai que doa suas últimas horas para a aposta de alcançar a salvação para a última pessoa amada que lhe restou naquele mundo, fracassa terrivelmente nesse modelo. Colocando lado a lado humanos e mortos-vivos, é aparente a facilidade de viver na terra desolada por eles. Enquanto os personagens que Andy conhece na sua jornada são previsíveis do primeiro ao último estágio de conhecimento, os inimigos da humanidade são tão passivos e figurinistas da história quanto lhes foi permitido ser. Um trato precário na possibilidade de explorar um horror e ambientar um perigo que habita a cada esquina. Uma viva ameaça para a vida a partir de qualquer erro cometido por algum personagem.

Salvo o baixo custeio que a produção dá para a totalidade de suas cenas, a limitação não conta como um fator determinante para a mesma qualidade final de como Cargo começa e termina. O retrato emotivo e a relação de pai e filha pouco é explorada com o mesmo impacto que o curta-metragem de 2013 conseguiu ter em poucos minutos. Talvez a interpretação de Andy Rodoreda, assim como a própria edição no pouco tempo em tela lhe permitido ter para o filme de 2013, tenham se tornado sólidos o suficiente para que não fosse necessário mergulhar em uma história muitas vezes arrastada ou uma jornada comprometida. O simples retrato de pai, filha e sacrifício formaram a metaforização suficiente para arrancar lágrimas de qualquer um. O mesmo Andy Rodoreda faz uma participação como um outro pai que protege sua família à beira de um rio. Uma ponta grande o suficiente para gerar uma cena inteira e lembrar a todos o quão marcante o filme deste ano poderia ter se tornado.

Nesta lógica da construção de Cargo para o grande streaming, ficou subentendida a verdadeira validade de um ambiente participante. A escolha da ambientação desértica interiorana pouco pesa em qualquer instância. Diálogos são progressivos e atropelados na comunhão com os personagens que participam deles, as caminhadas tomam a mesma prática e os perigos não mudam os sobreviventes para o que fazer em seguida, talvez por não terem qualquer tempo de fazê-lo. Cargo aparenta ter uma história dominadora de tudo à sua volta. Uma mão invisível que joga os bonecos para onde quer e não os deixa parar e observar. A premissa não reserva tempo a perder. Andy não pode se dar o luxo de descansar ou se relacionar por muito tempo, e isso é fatalmente o grilhão que torna o longa um grande simulador de caminhada sem questionamentos da esperança em encontrar o fim da trilha ou sobreviventes (estes estão aos montes espalhados por aí).

A jovem Simone Landers é introduzida no início como uma protagonista paralela. A edição demanda que o progresso feito por Andy seja tão acompanhado do de Thoomi que fica claro o inevitável encontro, mesmo que nem motivo ou consequência sejam fundamentados daquilo. O forçado destino que une os dois personagens introduz um passagem emocional para um deles, talvez o único da história que tenha um e sofra com ele. No entanto, o trato dado ao trauma de perder um parente de vínculo tão próximo é derramado só até o momento em que a trama desce a ladeira para uma conclusão confusa que mistura felicidade, esperança e… fofura? Quanto a esperada cena da vara-guia que finaliza o curta-metragem com uma reviravolta impressionante, aparentemente a sua presença no filme é quase instantânea e não ganha qualquer genialidade pelo timing em que foi usada. Nenhum corte generoso ou despedida lenta. A partir de sua metade, o roteiro se torna tão robótico que mata lentamente o que construiu aos garranchos até então. Cargo é finalizado nas telas como uma disputa de qualidades contra qualidades que acabam se anulando. Uma tentativa decepcionante de fazer o melhor do que já era excepcional.