Crítica| Bingo: O Rei das Manhãs [2017]

Nota do Filme :

Qualquer cinéfilo mais atento pode perceber que, em se tratando de filme brasileiros, poucos são os casos que unem uma história de apelo popular e técnica impecável. A coisa fica mais perceptível se contrastarmos com produções estrangeiras e considerarmos o ritmo e estilo hollywoodiano (se este modelo é ou não meritório de ser seguido não cabe a este texto responder). Fato é que são poucos os filmes nacionais de qualidade técnica e artística excepcional que não precisem de garimpagem para serem encontrados. De tempos em tempos, aparecem algumas destas obras que, dada a raridade da ocasião, costumam marcar história: Tropa de Elite, O Auto da Compadecida, Central do  Brasil, Bicho de 7 Cabeças, Que horas ela volta?, e, claro, a magnum opus brasileira Cidade de Deus.

Bingo: O Rei das manhãs também é um destes casos. Não é de surpreender, portanto, que ele e alguns dos filmes acima tenham como ponto comum a presença de Daniel Rezende. Com currículo irretocável de montador (Cidade de Deus, Robocop, Tropa de Elite, Diários de Motocicleta, etc.), Rezende se arriscou na direção pela primeira vez em Bingo e o resultado fez jus a sua ótima carreira cinematográfica.  

No roteiro de Luiz Bolognesi, Augusto Mendes (Vladimir Brichta) é um ator de pornôchanchada que vê no personagem Bingo, palhaço apresentador de programa infantil, sua chance de alcançar o tão ansiado sucesso profissional. O filme é baseado na história de Arlindo Barreto, um dos mais famosos e certamente mais polêmico intérprete do palhaço Bozo. Por questões de direitos autorais o filme não pôde usar nenhum dos nomes reais,  nem de emissoras, nem de personagens, nem de programas.

O que poderia ter sido um empecilho, transformou-se em liberdade poética. Sem se limitar a contar a história colada em seus fatos, Rezende pôde contar a história que quis. Ou 75% dela. Arlindo permitiu que alguns fatos fossem alterados em prol da dramaticidade da obra desde que 25% do filme fosse dedicado à sua conversão cristã. Fora isso, todas as outras alterações parecem ter divertido os produtores: além do Bozo que virou Bingo, SBT virou TVP, Globo virou Mundial, Vênus Platinada virou Dama de Prata etc, com exceção de Gretchen (Emanuelle Araújo), que só segue seu próprio regimento, todos os nomes foram alterados.

O filme se passa no início dos anos 80, uma época quase distópica na história da televisão brasileira. O início da TV comercial (massivamente dominadas por programas de entretenimento com a grade ditada por pesquisas de preferência e audiência) no Brasil testava não apenas seu público mas também os limites de sua permissividade -reflexo também de um regime ditatorial a se diluir.  

Sendo guiado pelas pesquisas de audiência, o programa Bingo é observado de perto pelo criador que construiu seu império nos EUA. Sempre fazendo questão de salientar que o palhaço é sua marca, o gringo rigoroso tem problemas em embalar sua criação no Brasil devido às particularidades de nossa sociedade e de nossas crianças. Augusto, por outro lado, atento às nossas idiossincrasias (“o Brasil não é para iniciantes” diz o personagem em um momento do filme) convence a diretora Lúcia (interpretada pela incrível Leandra Leal) a deixá-lo improvisar. Este é o ponto de virada do programa. A partir daí, são recordes atrás de recordes até tomar o primeiro lugar (objetivo atingido com a participação polêmica de Gretchen) das mãos da Mundial, até então líder absoluta de audiência.  

Com o sucesso vem o dinheiro, as drogas e o sexo. Vem também sua tragédia:  Bingo ser uma marca significa que o personagem deve transcender seus intérpretes (e posteriormente motiva o descarte de Augusto no primeiro sinal de problema), ou seja, os atores por trás da maquiagem jamais poderiam ser revelados. Negado ao reconhecimento que deseja e merece, esta contradição entre fama e anonimato será sua ruína.

Incapaz de lidar com esse paradoxo, imerge-se nas drogas e durante este processo vai se perdendo na figura anárquica que construiu para si. O palhaço toma espaço enquanto ofusca o ator dedicado, filho devoto e o pai amoroso.

 

O filho Gabriel (Cauã Martins) protagoniza outra contradição de sua vida: ter como trabalho o entretenimento de todas as crianças do país e justamente pelo ofício negligenciar o tempo com o próprio filho. Também a relação com a mãe, Marta Mendes (Ana Lúcia Torre) ex atriz de sucesso, é embebida de obscuridades com uma tensão quase sexual inquietante à la Norman Bates, além de construir um peso dramático sobre a personalidade vaidosa do artista. 

Estas ambivalências combinam e potencializam a figura ambígua do palhaço (e também das crianças) sempre entre a malícia e a inocência e sempre questionador. Para aprender sobre isso, Augusto faz um “estágio” com o palhaço de circo interpretado por Domingos Montagner (falecido em 2016) cuja companhia circense, Lamínia, deu consultoria para a produção do longa, em especial para Vladimir Brichta.

O estágio ecoa positivamente no filme: o ator cria uma voz e linguagem corporal para Bingo que dá personalidade própria ao palhaço e vai muito além de apenas imitar o(s) Bozo(s). Brichta passeia com igual louvor por todas as camadas emocionais (e são muitas!) de Augusto. Verdadeiramente dá um show de interpretação e entrega um personagem irreverente, multidimensional e carismático, um dos mais completos do nosso cinema. Vladimir é a alma do filme.

Dirigidos com eficiência, o elenco completado por Augusto Madeira, Tainá Müller, Fernando Sampaio, Soren Hellerup e  Pedro Bial está todo bom, mas é preciso destacar o trabalho de Leandra Leal. A atriz transmite perfeitamente os anseios da diretora iniciante, as dificuldade da mulher que precisa se impor num ambiente dominado por homens e os conflitos da crente que condena e admira as ações inconsequentes do protagonista.

A ótima direção de arte reconstrói perfeitamente os anos 80 auxiliada pelo figurino e fotografia que compõem tonalidades evocativas da época, além de uma trilha sonora discreta que não cansa o ouvido dos espectadores martelando os tempos em que o filme se passa.

Diálogos um pouco artificiais, planos da cidade que duram mais do que deveriam, falta de uma marcador temporal (não sabemos se o filme se passa em um ano ou mais) e terceiro ato apressado (aquele referente aos 25% exigidos por Arlindo) são pontos negativos que nunca chegam a atrapalhar a experiência ou diminuir o valor do filme.

Ainda que com algumas facilitações narrativas nenhuma saída dramática é forçado ou inverossímil, porque o filme constrói sua própria verdade. O roteiro é eficiente em contar a história nos moldes de ambição-sucesso-declínio e redenção comum das cinebiografias, mas é  pela excelente direção de Rezende que o universo se torna coeso.

Todos os elementos são componentes narrativos para o diretor, desde a iluminação que ressalta as emoções das personagens, o (ótimo) plano sequência que exprime a agonia e desespero do protagonista, a antecipação da decadência de Augusto como ator e também como pai na cena em que Gabriel está prestes a soprar sua vela de aniversário no formato do palhaço, a mãe que deixa o “palco” numa cena belíssima que antecede seu falecimento, até a música não diegética que nos indica a trajetória de Augusto (“First I’m gonna make it then I’m gonna break it til it falls apart”). A isto somam-se movimentos de câmera bem planejados, passagens de cenas dinâmicas, enquadramentos eficientes, olhar treinado de editor que favoreceu a montagem do filme (feita não por Rezende, mas por Marcio Hashimoto) e a dosagem certa de humor que nunca ofusca o drama.

Um verdadeiro retrato da cultura pop brasileira dos anos 80 feito com esmero artístico e técnico. Um filme divertido de ritmo enérgico, original, com tom equilibrado e narrativa sofisticada. Bingo: O Rei das Manhãs nasceu clássico.