Nota do Filme:
O espetáculo ficcional de Agatha Christie toma lugar pela segunda vez no audiovisual graças à alguma ideia desimpedida e uma grande despreocupação. Kenneth Branagh direciona aqui o sólido roteiro adaptado de Michael Green para uma renovação que quebra previsibilidades com antemão. Arte e direção se encontram para criar uma adaptação livre de pesos e preenchida com justificativas. O rumo que o diretor dá para a trama não é diferente de qualquer coisa que o espectador dessas transgressões de plataforma já tenha visto. O que Branagh deixa para trás, contudo, é uma límpida performance de inquietação visual e uma enxuta elaboração do que seria uma complexa trama agora migalhada.
O primeiro cruzamento perigoso da nova roupagem começa de fora. O fervente elenco não compromete o roteiro fechado ou é delegado para uma ausência irreparável de qualidade essencial para uma adaptação. A feliz surpresa é entregue já durante a primeira metade do desenvolvimento. E para essa garantia de harmonia, a direção usa critérios que podem muito bem se igualar com os da qualidade da obra clássica. O mistério é o único elemento aqui que garante a total estabilidade de filme e personagens. Essa dependência faz com que todo o filme crie o suspense necessário que só uma boa adaptação poderia criar aliada ao novo rendimento visual. A interdependência de cores, conflitos e escalas sonoras é tão pulsante quanto o forte sotaque do detetive. Ainda que se adaptem, algumas coisas nunca mudam.
Ainda que Hercule Poirot (Kenneth Branagh) seja o guia do público para a pequena mas alarmante cadeia de eventos, apenas uma lasca grossa do maior detetive do mundo é deixada para trás em Assassinato no Expresso do Oriente. Essa falta de compromisso em contar uma grande e conflituosa trama secundária comumente presente nas produções modernizadas do gênero tira o diretor do risco de expressar demais o que é ambicionado (em garantia) para uma sequência. Indiferente sobre o culpado, mandado ou mandante são títulos que a todo momento saltam sobre as personas de cada passageiro enquanto o espectador se torna tão atordoado quanto o detetive a cada nova descoberta menos auxiliadora que a anterior.
Recheado com possibilidades muitas vezes extraviadas pela rapidez com que a trama corre, o Expresso do Oriente toma sentido e vida nesta nova interpretação da obra literária. A ambientação só adiciona ao que sempre foi imaginado para ser a grande locomotiva. Ainda que não seja contemplado em momento algum como deva se esperar, o Expresso ainda contribui para a maior parte dos preenchimentos externos. Quantos aos internos, a técnica do diretor para introduzir o grande conflito esperado é extremamente incisiva em causar uma compreensão analítica justa para a sua audiência. É justo dizer que, pelo menos ao se tratar da costumeira ficção original, tratar o consumidor como uma parte daquilo é essencial para aprisioná-lo. E no filme de Branagh as algemas são cordialmente colocadas logo ao início.
A mão de Michael Green no roteiro deixa a marca de um prólogo e um epílogo, ambos comumente consistentes. A esperança de que o mundo e a interpretação de Poirot sobre ele seja maior do que um único filme existe e é traçada. A maneira como o roteiro mitiga passagens mais fúteis que contribuiriam para o grande final só denota o quão trágica é a prolixidade em adaptações fidedignas. Contudo, facilmente os elementos poderiam ter sido alongados pela técnica tímida que Branagh usa para explorar grande parte das cenas com o cadáver. Essas miudezas, se jogadas para o público mais imerso, viram a contribuição que não pode ser ignorada de um intenso cuidado com o visual. E os diferenciais de roupagem e arte são aqui os importantíssimos principais que preenchem o silêncio do narrativo e eloquente detetive.
Sob toda a ótica ordinária com que é tratado ao final de grandes expectativas injustas, Assassinato no Expresso do Oriente é mais uma boa adaptação que não rende muito além disso. Salva recursos importantes por critério de obrigação quando se trata de desenterrar um inviolado conteúdo de quase cinquenta anos, mas se estabiliza por aí e não tropeça e nada além da maneira como lida com o recurso da velocidade. Sem perder nenhuma oportunidade de impressionar, a distribuição tensa do mistério pelos vagões é vívida. Não existe uma oportunidade de olhar para o lado, pensar sobre quem será a próxima vítima ou quando e como o assassino finalmente cometerá seu deslize final. Fora da tela, a maioria é frustrada ao tentar antecipar o grande fechamento.