Crítica | Anora (2024)

Nota do Filme:

“Não é Anora. É Ani.”

Anora

Anora segue a personagem título, mais conhecida como Ani (Mikey Madison), dançarina erótico em uma boate chamada HQ. Em um dia comum, atende o filho de um grande oligarca russo, de nome Ivan Zakharov (Mark Eydelshteyn). Ivan passa a requisitar os seus serviços fora da boate, como prostituta/acompanhante e, após uma semana juntos, casam-se de forma impulsiva. Todavia, a notícia não é bem recebida pelos seus pais, e o aparente conto de fadas corre perigo.

Por mais que Sean Baker não tenha um tipo de “truque narrativo” associado ao seu nome” – como, por exemplo, Christopher Nolan e o uso do tempo nos seus filmes –, é um dos diretores mais autorais da realidade. Seus três últimos longas –Projeto Flórida, Red Rocket e, agora, Anora – tem como ponto principal a vida de profissionais do sexo, buscando, de certa forma, desestigmatizar essa realidade e trazer atenção à indivíduos usualmente marginalizados.

Aqui, a obra apresenta três momentos bem distintos: (i) o conto de fadas entre Ani e Ivan, que inclui desde o seu primeiro encontro e o seu eventual casamento; (ii) as consequências deste casamento, que inclui a reação da família Zakharov; e (iii) a resolução deste conflito.

De plano, é possível traçarmos comparações com Uma Linda Mulher, clássico dos anos 90. Se no romance de Julia Roberts a relação com Richard Gere é um conto de fadas transformado em realidade, em Anora, essa fantasia é duramente destruída pela realidade.

Isto porque o casamento do filho de um importante oligarca russo com uma prostituta é algo que não pode ser aceito pela família. Nessa linha, é interessante notar como Baker “quebra”, também, o clichê quanto a origem da riqueza desta família. Ainda no início da história, Ivan brinca que seu pai seria um traficante de armas ou de drogas, quando, na realidade, o negócio é estritamente legal. O ramo de negócios nunca é explicitado, mas o espectador atento perceberá que a família atua na indústria da moda.

Dessa forma, o diretor reduz a expectativa da audiência. Este não será, então, um longa-metragem permeado por cenas de ação envolvendo uma família do crime, mas sim uma demonstração mais intimista de como o dinheiro, ainda que legítimo, também pode facilmente ser usado para subjugar aqueles abaixo. Ocorre que o produto final é um filme paradoxal e contraditório em sua própria natureza, razão pela qual há conflito nas mensagens que, acredita-se, tentava transmitir.

A começar pela sua personagem título. Ao final da história, o espectador terminará sabendo mais da vida dos empregados de Ivan, do que da vida de Ani, o que cria uma dissonância curiosa, afinal, para todos os personagens, “quem é Ani?” é uma pergunta desimportante. Contudo, a audiência deve ter alguma ligação com a protagonistas, o que se torna incrivelmente difícil quando não sabemos (quase) nada dela. Todas as informações que temos, a parte da sua profissão, são que (i) ela tem uma relação distante com a família (por qual razão?); (ii) tem uma relação aparentemente não amigável com a sua irmã (por qual razão?) e; (iii) tinha uma ligação especial com a sua avó russa (por qual razão?).

Nos parece que se ocultar por trás de algum tipo de meta-comentário sobre o assunto, algo como “tal como na realidade, preocupa-se apenas com os personagens ricos” é apenas uma desculpa conveniente para a ausência de respostas. Afinal, que tipo de mensagem isso transmite? Não devemos nos importar com quem Ani é?

É difícil, então, desvendar se Ani de fato acredita no seu romance com Ivan. Ela é uma mulher jovem, é claro, mas é uma pessoa que, ao contrário de Ivan, teve que batalhar por aquilo que tem na sua vida. Dessa forma, é justo presumir que ela sabe que essa não é uma história de amor. Até mesmo porque o pedido de casamento decorreu, justamente, da vontade de Ivan em se tornar americano para não precisar voltar ao seu país assumir a oligarquia da família.

Todavia, no decorrer do filme, Ani demonstra uma ingenuidade que faz parecer que, ao menos ela, se apaixonou por Ivan. Mesmo depois dele abandoná-la e desaparecer. Mesmo depois de todos lhe falarem que Ivan faz “esse tipo de coisa” desde pequeno. Não há razão aparente para Ani crer que seu marido é algo mais que um adulto mimado que nunca teve que lidar com consequências na sua vida, mas ainda assim ela tem essa crença.

São situações como essa que um maior insight em seu personagem serviria para preencher essas lacunas e responder a essas perguntas. Afinal, há amor? De onde vem esse otimismo quase ingênuo? Nunca saberemos.

Contudo, o pior momento do filme é, sem sombra de dúvidas, quando o casamento é descoberto e o casal é encurralado pelos seguranças da família. Ani é amarrada e amordaçada por um homem muito mais forte que ela, logo após machucá-lo e tentar fugir. Por mais que essa não seja uma família de traficantes de armas ou algo do gênero, como o roteiro brincou inicialmente, o medo de violência sexual neste momento é algo bem real para a personagem.

Ainda assim, o modo como a cena é construída, quase como um esquete para maiores de Esqueceram de Mim. O enquadramento cômico da protagonista, apoiada no sofá indefesa com o seu captor por trás, de joelhos, é apenas errado, e acaba fazendo piada do medo legítimo da protagonista de ser violada sexualmente. Inclusive, há menções a possivelmente forçá-la a abortar um eventual filho, como se fosse uma piada.

Por essas e outras razões, Anora entra em contradição consigo mesmo, não sendo possível precisar, efetivamente, o que tenta dizer. O conto de fadas inicial, que mais parece glamourizar o trabalho sexual, é quebrado por situações contraditórias e a uma péssima representação de uma possível violência sexual. Todos esses elementos combinados acabam por criar uma resolução pouco satisfativa a, outrora, uma história promissora.