Crítica | Annette (2021)

Nota do Filme:

Annette é um filme audacioso, grandioso e, por estar tão seguro em sua proposta, ele talvez seja um dos maiores espetáculos visuais da filmografia do diretor Leos Carax. O francês sabe perfeitamente o poder que imagens bem construídas podem causar no espectador e, por isso, se sente muito à vontade para explorar certos exageros na composição dessa trama de ares bastante teatrais. Nada é entregue de mão beijada, mas por trás das metáforas e artifícios visuais, Annette, na verdade, tem uma mensagem simples e, mesmo sendo um filme imperfeito, consegue emocionar e encantar todos que estiverem dispostos a encarar a experiência.

Partindo de uma ideia concebida pelo duo pop Sparks, que também assina o roteiro, Annette, lançado no Brasil pela MUBI no dia 26 de novembro, une dois polos aparentemente antagônicos da arte: a música e a comédia. O filme conta a história de Henry McHenry (Adam Driver), um famoso comediante stand-up que extrai o riso de ofensas à sua plateia, cada vez menos lotada. Ele acaba se apaixonando pela estrela de ópera Ann Defrasnoux (Marion Cotillard). Eles vivem uma vida glamurosa em Los Angeles até o nascimento de sua filha Annette, que aos poucos vai mudando o relacionamento dos dois.

Durante pouco mais de duas horas, Leos Carax constrói um musical trágico, mas poderoso, que critica com destreza uma infinidade de temas. Annette fala entre outras coisas sobre o fazer artístico, monstros internos, fama, masculidade tóxica e alienação parental dentro de um universo onde os sentimentos são transformados em performance, rompendo a barreira do que é real e do que é imaginário. O diretor compreende bem a liberdade oferecida pelo gênero e traduz a teatralidade do musical não apenas no visual do filme, mas também para estabelecer uma dimensão metalinguística na trama.

Adam Driver e Marion Cotillard em cena de Annette.

Se munindo de uma linguagem muito própria, Carax consegue êxito em muitos pontos de seu projeto, sobretudo quando trabalha a dificuldade do ser humano em se desvencilhar das projeções que ele faz no outro. Ao fazer de Annette um grande espetáculo musical metalinguístico de exageros, certos simbolismos funcionam muito bem para traduzir em imagens esse sentimento de projetar expectativas no outro e nunca vê-lo como ele realmente é. O peso dramático desse tema é bastante forte e o diretor consegue transmitir, através de metáforas, músicas e dicotomias, as consequências cruéis de ser sufocado pelas próprias projeções.

A primeira metade do filme se dedica mostrar o romance do casal protagonista e também suas performances no palco, que é quando Carax estabelece um dos grandes paralelos da trama. Enquanto Ann, uma mulher alegre e carinhosa, está completamente segura de si encenando uma personagem que caminha graciosamente para uma grande tragédia, o melancólico Henry está no palco o tempo todo dialogando com seu público sem nunca ter a palavra final sobre quem é ou qual seu propósito. Henry, que flerta constantemente com o abismo, vê sua carreira afundar cada vez mais e esse fato desencadeia vários conflitos na história.

Marion Cotillard em cena de Annette.

A partir da externalização de sentimentos através das letras das músicas, dos papéis que ambos os artistas desempenham no palco e das diversas ferramentas visuais, Annette atravessa a quarta parede e nos faz refletir sobre nosso hábito como público de endeusar figuras numa dimensão além da natural, sem pensar na pessoa por trás da performance. Essa discussão está presente, sobretudo, na segunda metade da história na forma como o diretor escolhe representar a criança Annette quando esta se torna uma estrela mundialmente conhecida por seu dom.

Contudo, mesmo no controle da linguagem que criou para seu filme, a fórmula não é de todo perfeita. A explosão de ferramentas usadas pelo diretor faz sentido dentro da trama, mas depois da primeira hora, essa atmosfera começa a pesar. De fato, a duração se torna um problema, a repetição de sentimentos através das músicas fica enfadonha e uma boa parte de Annette parece se perder dentro do próprio universo. A impressão é que o filme se esforça (e muito) para se esconder, desnecessariamente, dentro dele mesmo. Em certos momentos, até o exagero proposital pode passar do ponto e essa literalidade toda, que é repetida diversas vezes para o espectador, termina sendo um problema.

Simon Helberg em cena de Annette.

Talvez um dos principais motivos para que a coisa toda tenha desandado seja o foco exagerado do longa no Henry de Adam Driver, que faz um trabalho memorável, mas é sabotado por um personagem difícil de acompanhar. Ainda que seu relacionamento com Ann seja o grande destaque da história, Cotillard não tem tanto tempo de tela quanto ele e mesmo que Driver desempenhe a tarefa com muito louvor, o personagem é bastante intragável. Ainda assim, o ator é o maior destaque do filme e consegue trazer para Henry uma melancolia e brutalidade muito bem-vindas.

Marion está reluzente como Ann e sua delicadeza é tocante, mas era Simon Helberg, o pianista que acompanha Ann nos shows, quem merecia mais destaque. Seu personagem tem dois ótimos momentos no filme e fica a sensação de que ele podia ter mais destaque na trama. Além de ter um passado com a cantora, ele é uma das pessoas que compactua com a exploração do dom de Annette, e justamente por isso seu arco poderia ser muito mais desenvolvido. Talento não lhe falta para segurar a responsabilidade.

Como um todo, Annette é uma obra que discute através da caricatura e do exagero teatral o grande abismo que separa a percepção alheia daquilo que realmente somos. Mergulhando de cabeça na linguagem do musical e acrescentando enormes doses de metalinguagem, ele tem toda a intenção de ser um filme grandioso, pena que se esforça demais, fica cansativo e boa parte da história acaba se perdendo nas próprias regras. Quando chega à cena final, contudo, acaba se tornando tão poderoso quanto gostaria de ser e alcança com folga aquele que deve ser um de seus principais objetivos: provocar os sentimentos e a imaginação do espectador por um longo tempo.