Nota do Filme:
A Maldição da Residência Hill se trata de uma releitura do romance de mesmo nome[1], escrito por Shirley Jackson, publicado originalmente no ano de 1959. Na obra, acompanhamos a família Crain, no presente e no passado, época na qual ainda se mudaram à Residência Hill, a despeito dos rumores acerca de sua assombração.
Percebe-se, assim, que Mike Flanagan, criador, diretor, roteirista, produtor e editor da série, busca recontar a clássica história de um modo diferenciado. Ademais, aproveita a oportunidade para se utilizar de um método narrativo mais inventivo, por meio do qual transita por diferentes períodos de tempo. Não se trata, ressalta-se, de algo particularmente inovador, mas o modo como é utilizado faz com que o espectador se sinta rapidamente imerso no conto.
A família Crain era composta por sete pessoas – o pai Hugh (Henry Tomas/Timothy Hutton), a mãe Olivia (Carla Gugino), os filhos Steven (Michiel Huisman/Paxton Singleton) e Luke (Oliver Jackson-Cohen/Julian Hilliard) e as filhas Shirley (Elizabeth Reaser/Lulu Wilson), Theodora (Kate Siegel[2]/Mckenna Grace) e Nell (Victoria Pedretti/Violet McGraw) – e havia se mudado para a Residência Hill com o intuito de reformá-la e revendê-la, para que pudessem estabilizar a sua condição financeira. Contudo, após o aparente suicídio de Olivia, o núcleo se desfez, incapazes de lidar com trauma, de modo que cada um acabou crescendo à sua maneira.
Nesse sentido, a despeito de se tratar de um seriado de terror, faz-se necessário ressaltar que o foco da trama jamais é a casa amaldiçoada, ou, ainda, os mistérios que a permeiam. Ao contrário, a narrativa segue de maneira intensa a vida dos personagens que lá viveram – sobretudo os descendentes – mostrando como essa assombração agiu sobre cada indivíduo especificamente e, ainda, como reagem, de maneira individual, aos traumas dali decorrentes.
Dessa forma, tem-se que A Maldição da Residência Hill consegue construir, com maestria, cada um dos seus cinco protagonistas, sendo, talvez, um feito inédito à séries do gênero. Isto porque o roteiro dispõe, a todos, tempo de tela suficiente, de modo a torná-los relacionáveis, cada qual com seus traços mais marcantes. Assim, é perceptível que a sua caracterização contém grande delicadeza, fazendo com que pareçam quase reais.
Com esse intuito, Mike Flanagan reserva os primeiros cinco episódios para abordar cada um dos filhos individualmente. Dessa maneira, a audiência pode se conectar a cada um deles de forma quase imediata, o que solidifica, de modo competente, a “relação” da audiência com os personagens em tela.
O destaque varia, ao seu seu modo, posto que cada um conta com grande individualidade, sempre bem construída e justificada. Nesse sentido, Steve se tornou um grande cético quanto ao sobrenatural – ou melhor, em suas palavras, quanto ao pré-natural –, Shirley se tornou extremamente controladora quanto a todos os aspectos de sua vida – pessoal e profissional –, Theodora se retraiu, escondendo as suas emoções do mundo exterior – em suas palavras, atrás de um muro por ela construído – e Luke buscou aliviar a própria dor por meio da utilização de drogas, principalmente heroína.
Nell, por sua vez, jamais conseguiu lidar com os traumas de seu passado, sentindo-se amaldiçoada – sobretudo pela Moça do Pescoço Torto – onde quer que fosse. Desse modo, representa a exceção à regra, uma vez que, ao não conseguir superar os seus dias na Residência Hill, acaba por tirar a própria vida, motivo pelo qual se torna, ela própria, o catalisador para o encontro dos irmãos sobreviventes.
Não são reservados, aos pais, episódios específicos, mas isso não retarda o seu grande desenvolvimento. Olivia, matriarca, foi extremamente afetada pela sua vivência na casa. Assim, por meio das seções narrativas que abordam aquele determinado período de tempo, os espectadores veem a personagem definhar de maneira constante e gradual. Até mesmo algo doce como o desejo de uma mãe pelo bem estar de seus filhos é corrompido, transformando-se em algo destrutivo que, eventualmente, resulta em sua própria morte, tragédia que afastaria seus entes queridos do local até os eventos envolvendo a sua filha caçula.
Por fim, temos Hugh, o patriarca da família, mais velho e solitário que nunca. Seu desespero por manter a segurança dos filhos foi o que resultou na sua separação, uma vez que jamais pode ser honesto com eles acerca dos acontecimentos na casa. Por mais que tenha nítida dificuldade em falar acerca do que ocorreu no fatídico dia, a audiência percebe com clareza a sua tentativa de não repetir os erros do passado e, assim, tentar reunir o que sobrou de seus descendentes.
Dessa forma, a história se mantém sólida no decorrer de seus dez episódios. Em aproximadamente 10 horas de duração, os conhecidos jump scares são utilizados com parcimônia, de modo que a tensão e o terror decorrem, majoritariamente, da relação interpessoal de todos os envolvidos, o que evidencia o excelente controle narrativo por parte de Mike Flanagan.
Ressalta-se, ainda, o excelente trabalho dos atores e atrizes da obra. Com desenvoltura natural, todos se sobressaem, à sua maneira, de modo que a saga tem excepcional fluidez. Esse fator, destaca-se, não se limita ao elenco principal, uma vez que os coadjuvantes representam seus papéis com maestria, ajudando a elevar a história.
Todavia, as crianças merecem especial menção nesse quesito. Isto porque, não raramente produções audiovisuais se utilizam de intérpretes mais jovens, com o intuito de trazer um toque de inocência à narrativa, o que pode afetar a qualidade do conto como um todo. Isto porque, até mesmo pela idade, tem-se como mais difícil fazer com que sigam instruções e se atentem ao roteiro. Aqui, porém, todos apresentam habilidades acima da média, em nada devendo aos colegas mais experientes
Há, ainda, espaço para excelência técnica. O modo como o seriado é filmado demonstra o grande cuidado envolvido, sobretudo na edição, motivo pelo qual a transação temporal jamais chega a afetar a história de maneira negativa, o que apenas demonstra a expertise de Mike Flanagan com o gênero.
Nessa seara, impossível não mencionar o incrível feito realizado no episódio seis, uma vez que composto por apenas cinco tomada. Desse modo, o diretor aproveita os longos takes – o maior com mais de dezessete minutos – para aumentar a tensão do conto de maneira exponencial, enriquecendo a experiência como um todo, de uma maneira que poucas séries[3] conseguem.
Por fim, importante destacar o quão catártico é o final da temporada. Isto é, por mais que restem algumas pontas soltas, a obra consegue, de maneira satisfatória, solucionar os seus núcleos principais, sem jamais se desviar do seu foco original, qual seja, a relação da família Crain para com a Residência Hill.
Sendo assim, A Maldição da Residência Hill é uma das melhores obras recentes do gênero. Com ela, Mike Flanagan, solidifica o seu nome como um dos expoentes do terror/suspense, superando suas obras anteriores como O Espelho, Hush – A Morte Ouve e Jogo Perigoso, longas que, inclusive, contam com a presença de muitos dos atores e atrizes do novo seriado. Tem-se, então, uma série que vive à expectativa, satisfazendo fãs da história original ao mesmo tempo em que se faz atrativo a novos espectadores.
[1] Essa igualdade acerca dos nomes diz respeito à nomeação original, em inglês. O livro foi traduzido para “A Assombração da Casa da Colina”. Explica-se que, por se tratar de uma releitura, Mike Flanagan optou por introduzir a família Hill como proprietária original da casa, motivo pelo qual, no seriado, não há tradução da palavra “hill” para “colina”, uma vez que se trata de um sobrenome.
[2] Kate Siegel é casada com Mike Flanagan desde 2016.
[3] A título exemplificativo, Mr. Robot usou a abordagem single take em um de seus episódios da terceira temporada – S03E05 (eps3.4_runtime-err0r.r00).
Carioca, advogado e apaixonado por cinema. Busco compartilhar um pouco desse sentimento.