Crítica | Sombras da Vida (A Ghost Story) [2017]

Combinar um elemento dramático com a roupagem do cinema independente sempre deu muito certo para manter o ritmo saudável de uma narrativa. Não existem regras produtivas sendo seguidas com uma forçação triste de se assistir ou elementos visuais surpreendentes de um show off inconsistente no que realmente importa: a mensagem que se deseja passar através da tela. A Ghost Story não é um filme incrível ou inesperado para o talento germinante na cena dos dramas com essa característica minimalista e aprofundada. Existe uma previsibilidade clara em cada uma das cenas, mas isso não impede o filme, a direção ou o próprio roteiro de serem indiferentes com as emoções do público. O longa, curto para a história que tem, consegue entrar em qualquer um com essa incrível humildade.

A história é resumida e enxuta, buscando levantar uma abordagem sobre a resiliência tanto espiritual como humana diante de um evento decisivo que desencadeia uma temporada de vertiginosas mudanças aos protagonistas. Assistir a transição dos eventos e suas consequências cada vez mais claras a dos próprios personagens não é algo direcionado pelo roteiro, mas pelo bom trabalho de uma técnica visual particular do diretor. Lowery passa longe de comprometer o filme com a morbidez dos cenários, dos personagens e o cansaço da câmera em cada uma de suas captações das principais cenas. Quanto ao que é mais rápido, há uma brusca utilização do som como um despertar do silêncio do filme. O filme é completamente mudo em significância, mas profundamente coeso em sensações. A Ghost Story não utiliza mais do que uma instigante sensação deixada em cada um de seus trechos para que o espectador perca o seu tempo procurando o significado em cada lamúria, desgosto e melancolia pingada sobre a direção de arte muito satisfatória.

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Como o longa não perturba da maneira que seu trailer parece insinuar com o formato, ele crava uma importante e atropelada sensação do drama moderno de subjetivismo. A eventualidade da perda, já tão explorada no conteúdo dramático, não se reinventa com o tempo senão em cenário e personagens. Aqui acontece um debate filosófico sobre vida, morte, conformidade e finitude. Nada que é continua a ser para sempre, nem mesmo a denotação mais genealógica e expressiva da arte, seja ela de qual segmento for. Um abraço, um presente, uma recordação ou um compromisso há muito selado, tudo se perde no vazio do tempo que tudo devora em sua passagem. Essa trágica serventia do filme para o público desconforta no momento em que reflete consequências claras do que é realmente ser humano. Antes governando sentimentos na matriz do amor e de todas as sensações mais puras e metafísicas, aqui há uma mistura forte o suficiente de ciência, sociedade e filosofia capaz de inibir o altruísmo e preencher seu espaço com profunda ressaca sentimental em qualquer um.

Essa expressiva visão de Lowery (Rooney Mara)  para o drama contido em A Ghost Story esclarece e justifica alguns usos do visual e do sonoro em tantas passagens. A trilha, impossível de ser deixada de lado na completude da obra, sinfoniza uma jornada de descobrimento, passividade e nulificação emocional por Casey Affleck. Ainda que no fim, descobrir que tudo é uma linha sólida e impermeável de um filme que um dia encontrará seu término, dá ao trabalho do ator uma responsabilidade de retratação muito forte diante do seu papel como testemunha de tudo aquilo. As emoções não são omitidas diante do pano branco. Tudo aqui é visível e sentido pelo cenário e pela câmera. Durante a primeira metade do filme já é possível ao espectador aprender a viver junto ao vagante fantasma. A dificuldade aqui é a de compreender o que está acontecendo e o motivo de tudo aquilo.

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Os poucos personagens ativamente presentes em cenas não poupam em justificar suas existências diante do que a câmera ordena em previsibilidade que façam. As emoções são bem captadas apesar da ausência de explicações diretas e respostas gratuitamente dadas pelo roteiro, o que aqui torna-se saudável para a compreensão completa da obra. Casey Affleck e Rooney Mara desempenham bem a funcionalidade dos seus personagens dentro da trama. O destaque para Casey é óbvio, mas a forma como as cenas de Rooney Mara, ainda que subtraídas do contexto maior de aparição do ator, categorizam ela na mesma linha de desafios quanto a externalização do que a personagem passa. Nada é em vão diante das cenas vazias dentro da casa já tão moribunda quanto a própria vontade de viver nela pela personagem. É desencadeado por isso que a segunda metade do filme (a mais visceral no seu significado) toma ignição espontânea e compreensível.

Julgar o longa de Lowery como uma peça do polêmico ”pós-horror” é um erro tão grande quanto classificá-lo como do próprio gênero de horror habitual. Não existem padrões claros e suficientemente didáticos dentro da trama para a criação da rampa que dá para um susto ou para uma traumatizante experiência sensitiva física. O enquadramento de filmes assim muito se assemelha ao formato contista, não só pela sua duração, mas pelo que engloba em tão pouco tempo e com tamanha imersão usando poucos elementos narrativos, mas reinventados. A manutenção da qualidade (ou tipologia) de filmes assim muito vem da tentativa vanguardista pelo que não se concebeu ainda em obras anteriores. O exemplo que não pode ser deixado de fora aqui é o de Ghost: Do Outro Lado da Vida, que embora já ultrapassado hoje no modelo dramático, ainda consegue preservar grande significado para o início da década de 90 e o marco zero das questões existenciais de filmes assim.

Essa preocupação com a mensagem do filme tão lentamente desembrulhada a cada cena faz com que a sua conclusão seja inesperada, rápida e a única parte sua em que realmente um susto pode ser captado. A justificativa desse susto não chega perto da surpresa, mas do que a quebra de todo o significado do filme naquele único segundo representa. É o momento em que se enxerga o fundo da caixa agora sem a sua tampa. O seu conteúdo é embaçado, mas no fundo vazio, como tudo em A Ghost Story. É um filme que enxerga a reflexão como a guia da história. Se preocupa com o público e a sua compreensão final quase invariável diante do seu direcionamento. Os diálogos, embora raros, rasos e pouco substitutos do grande pano de fundo da história, conseguem retratar bem com uma titulação algumas páginas da trama. São anotações do que mais tarde será perdido. O filme começa, desenvolve e se conclui com o debate sobre o fim. O fim de tudo e de cada um, sem exceções a quem ou ao quê. Do fim ninguém pode fugir, e é aqui onde o longa de Lowery acerta cada um de seus espectadores com maestria.