Nota do Filme:
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Selecionado como representante dinamarquês e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na edição 2025, A Garota da Agulha nos leva a acompanhar Karoline (Vic Carmen Sonne), uma habitante da Copenhague de 1918. Após uma série de contratempos, a jovem se vê grávida e tomada pelo desespero, quando então conhece Dagmar (Trine Dyrholm), uma mulher mais velha que mantém um esquema de adoções clandestinas. Logo as duas passam a desenvolver uma relação cada vez mais próxima, até que uma revelação chocante muda a vida de ambas para sempre.
Inspirado em um caso verídico, cujos detalhes não serão aqui abordados, sob pena de spoilers, o longa é eficiente em apresentar a Dinamarca da época, mostrando como os efeitos da guerra foram sentidos mesmo o país tendo declarado neutralidade no conflito. Algo retratado, por exemplo, na mudança dos materiais com que lidam as costureiras da fábrica, que voltam a manusear tecidos mais suaves após trabalharem na confecção de uniformes (o que fazia com que suas agulhas frequentemente quebrassem, por não serem destinadas a este uso).
O diretor sueco-polonês Magnus von Horn sugere em seu projeto certa influência do expressionismo alemão (movimento surgido justamente no período entreguerras), com personagens frequentemente saindo das sombras, incluindo um instante no qual Jørgen (Joachim Fjelstrup) remete ao Dr. Caligari, quando é projetada sua silhueta de chapéu.
A Copenhague do filme, por sua vez, surge como um ambiente opressivo, reforçado pelas tomadas de edifícios altos em ruas estreitas, criando uma sensação de aperto sobre as pessoas que por ali transitam. Méritos para a fotografia de Michal Dymek (que já havia se destacado na função em EO), criador de imagens impactantes aproveitando-se do preto e branco para explorar o uso das já mencionadas sombras. Já a opção de trazer Karoline diante de espelhos logo em sua primeira aparição poderia ser um recurso batido, mas se justifica não apenas por corresponder à sua natureza, mas também por permitir uma rima visual mais adiante, quando Dagmar também aparece diante de espelhos justamente em um momento no qual a complexidade da relação entre elas começa a se manifestar.
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Também é curioso notar como em três momentos distintos nos quais Karoline é abordada por homens (ao sofrer despejo; quando Jørgen se aproveita da relação de poder entre ele e sua funcionária; quando um parceiro de Dagmar a ameaça), os atores são maiores que Sonne, e, assim, ela fica sempre menor na imagem. Em outra passagem, quando as funcionárias da fábrica estão deixando o local após o expediente, a protagonista é a única a se dirigir a um caminho diferente das demais, que se dividem em sair por lados opostos. Por fim, quando Karoline e Dagmar realizam uma das ações mais tensas do filme, não é por acaso que seus rostos não estejam em tela, e as vejamos apenas do pescoço para baixo.
Sonne, por sinal, faz um excelente trabalho com um papel que lhe exige muito, tanto em vulnerabilidade como em determinação. Pois é um roteiro (escrito por von Horn e Line Langebek Knudsen) corajoso, eventualmente expondo sua protagonista a situações desafiadoras da nossa capacidade de exercer empatia. E há uma sequência particularmente admirável na qual a atriz vai da felicidade ao contemplar a suntuosidade de uma mansão, passando pela desolação ao se dar conta de que não é bem-vinda, culminando em um olhar vazio ao ser submetida a um procedimento invasivo, tudo no decorrer de poucos minutos.
Também exerce função importante a trilha de Frederikke Hoffmeier, desde o início causando estranhamento e anunciando ameaças. E mesmo em momentos de alegria e descontração, como na celebração pelo fim da guerra, a música adota um tom sinistro.
A Garota da Agulha chega a flertar com o clichê da mulher perdida que necessita ser salva pelo amor incondicional de um homem inocente, mas consegue ficar no limite disso, mantendo em sua personagem principal o controle sobre seus passos. Controle que pode ser representado, inclusive, pela figura da agulha. Se em um nível, o objeto faz alusão tanto ao trabalho de costureira como à tentativa de interromper a gravidez, em outro pode ser visto como um instrumento de tear, de construir uma rede através do entrelaçamento de fios. Uma construção sugerida em seu desfecho, na qual a frase “aperte como se não quisesse soltar”, proferida anteriormente em outro contexto, é ressignificada em um modo esperançoso.
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Historiador que acredita que a vida fica mais fácil quando vamos ao cinema.
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