Crítica | A Baleia (The Whale) [2022]

Nota do Filme:

“E eu me senti mais triste ao ler os capítulos chatos que eram apenas descrições de baleias, porque eu sabia que o autor estava apenas tentando nos salvar de sua própria história triste, apenas por um tempo.”

Múltiplos Personagens

A Baleia acompanha Charlie (Brendan Fraser), um recluso professor de literatura e redação criativa que convive com uma obesidade severa, assistido apenas pela sua amiga e enfermeira Liz (Hong Chau) e visitado, ocasionalmente, por Thomas (Ty Simpkins), jovem religioso que busca ajudá-lo, ainda que à sua maneira. Após anos de abandono, busca se reconectar com a sua filha, Ellie (Sadie Sink), como uma redenção pelos seus erros do passado.

Muito foi dito acerca do retorno de Brendan Fraser para o cenário mainstream de Hollywood. O assédio sexual sofrido ainda em 2003 se juntou a um turbulento divórcio, problemas de saúde física e mental – depressão –, o que fez com que fosse impossível se manter nos holofotes por um longo período de tempo.

Ademais, tais intercorrências afetaram o seu físico, afastando-o do biotipo associado ao herói de ação/aventura pelo qual foi tão conhecido por A Múmia. Dessa forma, há certa simetria – guardadas as devidas proporções – entre o ator e Charlie, de modo que a sua escalação para o filme mais parece uma intervenção do destino.

Adaptado de um roteiro para teatro escrito por Samuel D. Hunter, A Baleia é, sobretudo, uma história de culpa e auto aversão que, inevitavelmente, levam à autodestruição do personagem. Ante o caráter divisivo da obra, por lidar com temas sensíveis como a obesidade e homossexualidade, essa é uma diferenciação não apenas importante, mas também necessária.

O comportamento de Charlie, próximo a algo verdadeiramente suicida, não decorre nem da sua orientação sexual nem de seu sobrepeso. A sua homossexualidade nunca é tratada como algo vergonhoso ou culpável, e a sua obesidade não é a causadora dos seus tormentos, mas sim um de seus sintomas.

Isto porque, após conhecer e se apaixonar pelo seu namorado – já falecido –, o protagonista não apenas se divorciou de sua então esposa, mas, também, abandonou a sua filha, à época com apenas oito anos de idade, o que causou grande remorso ao personagem e evidente impacto à vida de Ellie, hoje com dezesseis anos. Todavia, em que pese o amor que Charlie parecia nutrir pelo seu parceiro, seu suicídio repentino também pesa em sua consciência, não apenas pelo episódio em si, mas por tornar o abandono anteriormente citado quase que inócuo.

Todos são fatores que contribuem para o seu comportamento autodestrutivo, de modo que a comida serve como uma forma de amenizar tais sentimentos. Ao tentar se reconectar com a sua filha, para remediar os erros do passado, Charlie aceita qualquer ofensa e resistência por parte dela porque crê não apenas que merece tal desprezo, como, na verdade, merece mais. O ódio que ela sente dele jamais será maior que o ódio que sente de si mesmo.

Darren Aronofsky, diretor da obra, é bem competente em fazer com que o cenário demonstre esse sentimento com bastante precisão. Ao se passar exclusivamente no apartamento de Charlie – com exceção de um pequeno flashback –, com tons escuros e sem vida, a audiência se sente presa a esse turbilhão de emoções negativas. Apenas vemos a luz do sol em duas situações: no pequeno flashback mencionado e ao final do longa, justamente no momento da climax e da resolução emotiva, com o fim de representar a superação dessa condição de culpa e desprezo.

A representação das dificuldades cotidianas do protagonista, advindas do seu peso excessivo, podem dividir algumas pessoas. Alguns veem uma desumanização do personagem, o que reforçaria uma visão gordofóbica. Contudo, Aronofsky sempre contrasta isso com a humanidade quase invejável de seu personagem, seu otimismo e sua positividade em relação a todos à sua volta – menos a si mesmo.

A realidade, porém, é que Charlie não está bem, e é impossível não perceber ou retratar as consequências da doença que o aflige. Não é dito, no filme, o seu peso exato, mas materiais promocionais indicam algo em torno de 300kg, o que, decerto, terá impacto direto em qualquer atividade diária, desde se levantar da cama até mesmo a ir ao banheiro.

Há discussões sobre a utilização dos chamados fat suits – roupas especiais para simular gordura – que são, de fato, pertinentes, tal qual se discute, hoje, a necessidade de pessoas com deficiência interpretarem personagens com a respectiva deficiência, ao invés de simplesmente escalar atores para simulá-las. Nesse cenário específico, porém, é difícil imaginar que seria possível encontrar algum ator com essas exatas características.

Trata-se de um filme difícil, tanto para o espectador como para os envolvidos. Com apenas sete atores creditados – dos quais três deles têm apenas uma curta cena em tela – A Baleia arrematou duas indicações, Melhor Ator Principal (Brendan Fraser) e Melhor Atriz Coadjuvante (Hong Chau), sendo Fraser um dos favoritos na categoria.

O ponto fraco fica com a caracterização de Ellie. Isto porque, em que pese Sadie Sink entregar uma ótima performance, a personagem em si acaba sendo um clichê de adolescente rebelde. Se essa rebeldia se limitasse a Charlie haveria uma clara causalidade para tal, afinal, ela fora abandonada pelo pai. Mas a atitude desagradável se estende a todas as pessoas em volta, inclusive àquelas que não estão em tela, carecendo de qualquer nuance mais profunda.

Em situação semelhante, os temas tangenciais são pouco trabalhados, o que não é um problema per si, mas, parece haver certa carência no roteiro. Nesse sentido, ao trabalhar uma problemática sensível referente à devoção religiosa e como ela pode se tornar não uma salvação, mas uma maldição, esperava-se maior atenção à essa resolução. Essa ausência faz com que o bom trabalho de Ty Simpkins seja pouco percebido.

Portanto, A Baleia é a trágica história de um homem tão cheio de culpa e desprezo que crê que sua morte terá mais valor aqueles à sua volta que a sua vida, não importa o que lhe digam. Por conta de seus erros, crê que merece morrer, mas, não sem antes se punir continuamente. Ao final, a audiência percebe – e sente – que sempre será mais difícil se perdoar pelos próprios erros que perdoar aos outros.

CONSIDERAÇÕES E SPOILERS

Nunca pensei que fosse fazer uma dissertação em primeira pessoa, “regra” que sigo desde que comecei a escrever para o site ainda em 2017. Contudo, A Baleia é um filme extremamente divisivo, de modo que as opiniões acerca de seu conteúdo tendem a ser expressadas de maneira extremamente apaixonada e, não raramente, agressiva.

Como consequência, há uma tendência a alegações descabidas e pouco coerentes. Não é raro, na atualidade, a absoluta manifestação de certeza cega sem qualquer espaço para o debate de ideias, de modo que, ao ler tantas alegações sobre o filme – tratadas como afirmações pelos respectivos interlocutores –, entendi que uma seção do gênero poderia ser proveitosa.

Sei que declarações agressivas como as acima narradas não são raras, especialmente acerca de longa metragens, de modo que isso, por si só, não justificaria essa alteração de comportamento da minha parte. Contudo, a verdade é que uma das temáticas do filme – justamente a mais polêmica –, qual seja, “a obesidade”, guarda grande proximidade à mim, vez que apenas recentemente consegui vencer essa doença.

A mera tentativa de se “explicar um filme” é algo um tanto quanto pedante, então não é sobre isso que se trata este (não tão) pequeno epílogo. Busco apenas trazer uma perspectiva diferente da maioria que tenho visto pela internet. Deixo claro, apenas, essa seção não se trata de uma resposta a algum texto específico, até porque foram vários.

Pois bem. Um dos principais pontos que tentei trazer na “análise tradicional” foi que A Baleia não é um filme sobre obesidade propriamente dito, mas sim de culpa e auto aversão, sendo a doença apenas o fio condutor escolhido por Samuel Hunter, roteirista tanto do filme quanto da peça que o originou.

Após conhecer o amor de sua vida, o protagonista tem de lidar com o seu suicídio. Em que pese ver possíveis sinais, deve conviver com o fato de que não conseguiu salvar a pessoa que mais amava de si mesma algo que, por si só, é extremamente traumático.

Há, ainda, um caráter trágico, uma vez que o que ele precisava não era de afeição propriamente dita, mas sim de ajuda psicológica/psiquiátrica, de modo que Charlie jamais conseguiria salva-lo dessa forma. Ele se culpa, portanto, por algo sobre o qual não teve qualquer responsabilidade.

Acrescenta-se a isso o fato de que essa morte trata de questões complexas envolvendo a sua homossexualidade – afinal, seu namorado fora criado em uma religião extremamente conservadora e, basicamente, ensinado a se reprimir – e o abandono parental que fizeram com a sua filha, e temos uma forte combinação para causar grande sofrimento interno.

Charlie já lidava com problemas de peso antes, como dito no filme, contudo, após tais eventos, encontra na comida o único consolo. Essa compulsão cria um efeito cíclico e realimenta a própria culpa, fazendo com que ele nunca procure a ajuda necessária, pois acredita que merece o sofrimento que o acompanha, seja pela sua incapacidade de salvar seu namorado, seja pelo abandono de Ellie.

Charlie detém os meios de, talvez, se salvar. No decorrer do filme, descobrimos que ele tem uma grande quantia de dinheiro guardada. Essa cifra, como Liz diz, poderia ter ajudado a tratar a sua condição, mas ele escolhe não fazê-lo porque crê que sua morte será algo melhor a todos à sua volta. É, na realidade, uma forma de penitência extremamente lenta e dolorosa.

Essa situação cria um tipo de tragédia especial pelo motivo dado por ele: “o dinheiro é para a Ellie”, algo que pode parecer altruísta à primeira vista, mas não é. Não é necessário muito esforço mental para perceber que o melhor para a sua filha seria tê-lo com ela, para que ele pudesse se redimir em vida, não na morte. Trata-se de algo que a audiência consegue perceber com facilidade, contudo, o protagonista, mergulhado em auto aversão, não.

Após uma análise mais aprofundada, é difícil crer que A Baleia é um filme feito especificamente para abordar a obesidade, mas fato é que ele a utiliza. Dessa forma, é possível se entender que essa representação é ruim, mal feita e/ou prejudicial. Sobre isso, inclusive, sequer se faz necessário analisar as intenções dos envolvidos no longa, uma vez que, produzida a obra, a sua interpretação recai ao espectador.

A cada um cabe analisar o benefício – ou malefício – que o filme pode trazer ao tema. Quem faz a análise, porém, tem o ônus de, ao menos, estar aberto à possibilidade de ter a sua percepção alterada, seja por novas informações ou novas perspectivas.

Aqui, acho interessante abordar algumas críticas/comentários pontuais que me deparei acerca do filme, de um modo geral:

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(a) Charlie seria um personagem sem falhas e seria, literalmente, um santo, especialmente considerando como aguenta tanta rejeição da própria filha (esse não diz respeito à obesidade, mas, me incomodou);

Charlie abandonou a própria filha. É um tanto quanto difícil imaginar que isso não representa qualquer tipo de falha no personagem. Nesse sentido, em que pese sua ex-esposa dar a entender que dificultou qualquer contato entre os dois, ela menciona que era para impedir que ele visse como Ellie se tornou, de modo que é justo supor que isso apenas ocorreu após determinado período de tempo, de forma que o abandono inicial recai todo sobre o protagonista.

Sobre as ofensas, em que pese Charlie ser uma pessoa positiva, como diz sua própria ex-esposa, o modo como lida com qualquer ofensa decorre de seu próprio ódio a si mesmo. Ele aceita quaisquer ofensas de Ellie porque, na realidade, ele acha que as merece.

(b) A utilização de um fat suit seria uma violência às pessoas gordas;

Um ponto interessante que acho que pode ser melhor trabalhado, mas, deve considerar as limitações evidentes. Eu, particularmente, não conheço nenhum ator com um peso sequer aproximado ao do personagem. Inclusive, havendo as mesmas dificuldades, a filmagem em si seria impossível.

(c) O filme gera nojo em relação ao protagonista;

Trata-se de uma questão interpretativa. Os dois únicos personagens que veem Charlie pela primeira vez – Thomas e Dan, o entregador de pizza – têm reações semelhantes que podem ser interpretadas dessa forma. Contudo, essa reação inicial é contrastada pela própria doçura e empatia do protagonista.

Tal tipo de reação jamais é retratada como algo razoável ou justo, pelo contrário, de modo que reforça uma mensagem empática aos personagens.

Assim, a audiência deve questionar a própria reação inicial ao se deparar com o protagonista e, por consequência, questionar os seus próprios preconceitos.

(d) Os hábitos alimentares de Charlie não representam a maioria das pessoas gordas;

As causas da obesidade não se limitam a, simplesmente, “comer demais”, conforme é possível confirmar por mera pesquisa na internet. Em uma reportagem disponível no “globo.com” (https://ge.globo.com/eu-atleta/saude/noticia/obesidade-causas-da-doenca-vao-muito-alem-de-comer-demais.ghtml), por exemplo, listam-se seis raízes principais: (i) herança genética; (ii) desequilíbrio entre ingestão calórica e gasto de energia; (iii) dieta de baixa qualidade, baseada no consumo de alimentos hipercalóricos e ricos em gorduras, açúcar e carboidrato; (iv) alterações hormonais; (v) comer fora de hora ou sem fome; (vi) sedentarismo.

Destes, Charlie tem, ao menos, três – (ii), (iii) e (vi). Dados os comentários sobre sempre conviver com o sobrepeso, é justo supor que possui também o ponto (i). Quanto aos dois remanescentes, podemos conjecturar, mas com pouca base.

Dessa forma, não parece haver uma desconexão do filme com a realidade. Contudo, é importante lembrar que, ainda que não representasse a maioria das pessoas gordas, a representação não precisa ser majoritária, desde que seja real.

(e) Charlie seria miserável apenas por ser gay e gordo;

Interpretar dessa forma é desconsiderar qualquer profundidade maior, como já exposto nos tópicos anteriores. O excessivo reducionismo prejudica qualquer interpretação mais intensa, buscando uma simplificação exacerbada.

(f) Endossa que pessoas gordas podem morrer a qualquer minuto, uma vez que foca em um caso extremo;

A resposta se encontra na própria alegação: trata-se de um caso extremo, inclusive sendo assim descrito por diversas vezes. Não me parece haver qualquer inclinação genérica no longa.

(g) Charlie teria perdido o contato com Ellie depois que assumiu a homossexualidade;

Como dito, ver dessa forma parece tirar a responsabilidade do protagonista quanto ao abandono. Ao mesmo tempo, não há nada que indique que sua ex-esposa vetou qualquer contato após a revelação de sua orientação sexual.

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Enfim, como dito, essa seção não se trata de um rebate a algum texto específico, nem mesmo a qualquer crítica realizada ao filme. Apenas quis desconstruir algumas alegações que, com o devido respeito, considero pouco embasadas.

Dito isso, é bom lembrar, também, que não é uma tentativa de me inserir em uma posição de superioridade a quem quer que tenha interpretado dessa forma, mas sim trazer um contraponto às alegações. O ato de concordar/discordar permanece com o leitor, qualquer texto que seja.

Quem tiver interesse e puder, assista ao filme e tire suas próprias conclusões. Pesquise opiniões, em especial as divergentes, e se mantenha aberto a elas.

No mais, a quem quer que tenha ficado até o final dessa longa divagação, espero que tenha sido minimamente proveitosa.