O cinema africano é dificilmente lembrado e exaltado pelo público. Até mesmo os amantes da sétima arte e a crítica especializada costumam ter menos referências sobre as obras da região quando comparado com o restante do globo. Um retrato disso é a quase ausência dos filmes do continente nas premiações do Oscar, por exemplo. Na competição de melhor filme estrangeiro, apenas três obras africanas foram premiadas, enquanto que nas categorias de atuação, somente artistas que exibem dupla cidadania conseguiram alcançar a honraria máxima do prêmio mais popular do cinema.
Quando especificamos o recorte apenas para o Egito, a disparidade fica ainda mais evidente. Enviando filmes desde 1958 para concorrer a melhor filme estrangeiro, o cinema do país nunca conseguiu emplacar um indicado entre os finalistas da competição, sempre sendo eliminado na fase pré-qualificatória. Nas demais categorias, apenas dois profissionais do país chegaram a concorrer de fato: Omar Sharif, por seu trabalho no clássico Lawrence da Arábia (1962), competiu a melhor ator coadjuvante; e Jehane Noujaim, diretora nascida no Egito, mas criada no EUA, que participou da disputa pelo prêmio de melhor documentário com o filme The Square (2013).
Referenciado como a Hollywood do oriente, a indústria cinematográfica do país dos faraós é que apresenta a maior quantidade de filmes produzidos e exportados para o restante do planeta. A temática das obras, que já foi dominada por musicais, carrega com bastante frequência a inserção de assuntos tabus e críticas sociais feitas a partir da explanação da rotina dos habitantes do país. Após a revolução de 1952, que derrubou a monarquia do rei Faruq e instituiu a república (que posteriormente se transformaria em uma ditadura bastante longeva), diversos filmes antes proibidos foram lançados. Isso contribuiu, e muito, para a expansão e o desenvolvimento das produções nacionais. O mesmo aconteceu com a primavera árabe (2010-2012), que serviu como rico material fonte e se transformou no tema central de muitas obras mais recentes.
Nesse texto, que faz parte do especial do Cinematologia para a Copa do Mundo da Rússia, vamos procurar indicar alguns filmes, além de comentar sobre o principal diretor e o principal ator do país que fica cada dia mais famoso no mundo do futebol por conta da estrela Mohamed Salah.
Youssef Chahine (1926-2008)
Considerado o nome mais influente entre os diretores egípcios, Youssef foi o responsável por lançar a carreira de Omar Sharif (vamos comentar sobre ele mais abaixo). No ano de 1950, foi agraciado com um prêmio no 50º Festival de Cannes pelo conjunto de sua obra. Ganhou projeção internacional por co-dirigir o filme 11 de setembro (2002) com mais 10 diretores de diferentes países, que contaram, através de pequenos curtas metragens, sua visão sobre o fatídico dia do atentado que chocou o planeta.
Outra curiosidade sobre sua filmografia é a presença de personagens gays e bissexuais em suas obras, algo muito corajoso para o cinema do Egito, um país extremamente conservador. No decorrer dos anos, o diretor se viu cada vez mais em conflito com a indústria do país apoiada pelo governo e por suas constantes restrições. Em 1964, foi voluntariamente exilado pra o Líbano, onde conseguiu expressar um pouco mais as suas ideias.
- Cairo Station (1958)
- Alexandria…Why (1979)
- Alexandria Again and Forever (1990)
- Destiny (1997)
Omar Sharif (1932-2015)
O ator de mais destaque do país sem dúvidas é Omar Sharif. Por mais que tenha iniciado a carreira em sua terra natal, Omar acabou ganhando projeção internacional ao atuar em clássicos americanos e ingleses. Principalmente pelo fato de falar cinco ínguas fluentemente, o profissional era constantemente escolhido para viver papéis de personagens estrangeiros. Durante sua carreira, foi indicado a um Oscar pelo filme Lawrence da Arábia (1962), além de vencer dois Globos de Ouro por Doutro Jivago (1965) e por Lawrence da Arábia (1962), e um Cesar Awards, pelo filme Uma Amizade Sem Fronteiras (2003).
Filmes de destaque da carreira de Omar Sharif:
- Lawrence da Arabia (1962);
- Doutor Jivago (1965);
- Gengis Khan (1965);
- Funny Girl: A Garota Genial (1968);
- Uma Amizade Sem Fronteiras (2003).
A Múmia – A Noite da Passagem dos Anos (Al-Mummia) (1969)
No ano de 1881, preciosos artefatos começam a aparecer no mercado negro da capital, Cairo. As peças são identificadas como os pertences extremamente raros de faraós que viveram nas dinastias 17, 18 e 21, fator que prontamente chamou a atenção do Conselho Supremo de Antiguidades, grupo responsável por preservar tais itens. Os membros da tribo Horbat são identificados como possíveis responsáveis pela venda dos objetos em troca de dinheiro para sua sobrevivência, o que dá início à uma disputa interna para decidir o destino das peças.
O plot é baseado em uma história real que conta um dos maiores problemas da manutenção da história nacional do Egito. A maior parte dos itens ancestrais do país não se encontram dentro do território nacional. Espalhados por museus de todo o globo, os objetos acabaram sendo expostos ao público a quilômetros de distância de seu lugar original. Isso abre um debate sobre o nacionalismo, o tradicionalismo, a disputa entre capital e interior e o respeito (ou a falta dele) com os tão estimados antepassados do povo egípcio.
Um dos maiores clássicos do cinema do país, o filme foi escrito e dirigido por Shadi Abdel Salam e foi indicado a melhor filme no Festival de Cinema de Chicago.
Clash (2016)
Inspirado em eventos reais, o filme se passa quase inteiramente dentro de um camburão policial que está andando no meio das manifestações na cidade do Cairo para a deposição do presidente Mohamed Morsi. Dentro do veículo, são jogadas todas as pessoas que expressam qualquer ideia contrária à da polícia que tenta conter de maneira bruta todo tipo de protesto contrário ao governo. Mulheres, crianças, idosos e até estrangeiros são jogador de maneira cruel e áspera dentro do espaço mínimo de confinamento. Isso faz, inclusive, com que cidadãos complemente rivais, em questão de ideologia e crenças, compartilhem a falta de espaço de uma “jaula” com rodas.
A experiência é claustrofóbica e carrega tensão durante todos os 97 minutos da filmagem. O espectador fica com a dúvida de como pessoas tão diferentes irão conseguir conviver durante o período de contenção, e como elas farão para escapar da situação hostil na qual foram colocadas. A direção de Mohamed Diab é muito competente e prende a atenção durante toda a película. Sendo a segunda obra do jovem cineasta, Clash apenas comprova a temática combativa e corajosa que se repete em sua filmografia – Em Cairo 6,7,8 (2010), sua primeira obra, Diab contou a história de três mulheres que tiveram de lidar com situações de abuso sexual nas ruas do Egito, algo infelizmente muito comum até os dias de hoje.