Ah, o amor. Uma palavra de quatro letras que tenta comprimir um sentimento complexo, sem forma, definição e limites. Esse é um dos temas que mais desperta curiosidade na sociedade desde a Antiguidade por conta da abrangência de seus inúmeros sentidos. Platão já dizia que o amor é uma perigosa doença mental, o juízo de valor para essa afirmação vai de cada um, afinal, quem também nunca platonizou uma pessoa e sofreu com isso, mesmo nunca havendo nada? E como esse é um tópico inerente ao ser humano, tem-se o reflexo disso nas artes, em que vários artistas buscam conceituar, manifestar, ilustrar, transmitir, ou apenas tentar compreender a extensão desse fenômeno, e no cinema não seria diferente.
Desde sempre esse foi um dos assuntos mais utilizados no meio cinematográfico, a contar do clássico Casablanca até comédias românticas mais recentes como About Time (Questão de Tempo aqui no Brasil), não discutindo a qualidade dessas obras ou as comparando entre si, apenas evidenciando a temática entre elas, dispondo do poder de arrebatar o público com um turbilhão de emoções que, se bem conduzidos pela direção, consegue impactar o espectador, fato este que acontece com um novo clássico moderno: The Shape Of Water (A forma da água).
Sem dúvidas, ao lado de Call Me By Your Name (Me chame pelo seu nome), são os melhores filmes de 2017 sobre o assunto (porém esse texto não visitará o segundo longa visto que o primeiro é o foco desse texto). Guillermo del Toro e Vanessa Taylor entregam um história pura, inocente e virtuosa sobre o amor, derrubando todas as barreiras e tabus que o envolvem e mostram como esse é um sentimento que permeia a tudo e a todos sem distinção de características físicas, sociais, religiosas, políticas, etc.
Sendo assim, temos a protagonista Elisa, uma jovem muda que visivelmente sofreu preconceitos ou dificuldades amorosas por conta de sua insuficiência vocal, que vai se deparar com o amor em uma criatura amazônica capturada pelo governo estadunidense, em que o relacionamento dos dois seres singulares será o fio condutor da narrativa, com o contexto de Guerra Fria de pano de fundo aumentando ainda mais a carga dramática da história.
Antes de dissertar sobre o relacionamento de Elisa e A Criatura, convém acentuar como as relações dos outros personagens ampliam ainda mais o romance de ambos por conta da castidade que os transpõe. Primeiramente, destaca-se Richard Strickland (Michael Shannon), o coronel da instalação militar, que possui um casamento estereotipado da típica propaganda do american way of life, em que apenas com uma cena o espectador compreende a relação do coronel com a esposa: o dominador e a submissa, traço esse de sua personalidade que é mostrado em tantas cenas do filme. O relacionamento entre esses dois personagens acrescenta ainda mais o de Elisa pois não existe algo cândido na relação, ela soa suja, imperante, desigual, o que a torna dissonante do “amor” principal.
Além desse, é apresentado o relacionamento de Zelda (Octavia Spencer) com o seu marido e, novamente em uma única cena, o espectador descriptografa a relação desses dois personagens, percebendo que há uma distância entre eles, seja pela falta de comunicação direta entre eles ou por algum momento de carinho mais intimo, se tornando impossível de criar uma empatia para com o casal. E isso contrasta ainda mais com o o amor de Elisa e A Criatura, pois temos uma muda e um homem-peixe, em que ambos não conseguem proferir palavras de afeto um para com o outro, só que a afinidade criada entre eles e os espectadores é notória, mesmo que singela, fazendo com que se consiga compreender o que está sendo sentido entre eles sem nada precisar ser dito.
Contudo, os outros dois casos de amor no longa são mais abstratos: têm-se Giles (Richard Jenkins) e o Dr. Robert Hoffstetler (Michael Sthulbarg). O primeiro é vizinho de Elisa e se apaixona pelo garçom da loja de bolos, tentando se aproximar e conhecê-lo melhor, porém ele descobre que o rapaz não é homossexual, pelo contrário, é racista e homofóbico, o que faz com que Giles fique chateado com isso. E qual a ligação disso com Elisa? Ora, essa dificuldade de se conectar com os outros que ele exibe diverge totalmente da retratada entre a protagonista e A Criatura, em que o vínculo deles é feito quase de forma instantânea, sem apresentar empecilhos. Já o segundo, ele é o cientista do laboratório em que o governo estadunidense mantém a criatura, mas também é um agente soviético que entrega informações ao seu país natal, na qual o seu grande amor é a ciência, se tornando tão puro quanto o “amor” principal por conta do sacrifício feito por ele, contradizendo todos os seus juramentos e crenças como espião e deixando prevalecer sua paixão científica pela Criatura como objeto de estudo e vida. Esse último talvez seja o único amor que não é discrepante, e sim intensificador para o relacionamento de Elisa, pois a forma que o Dr. Robert sente a paixão pela ciência é intensa, calorosa e convidativa ao espectador, sendo impossível não associá-la ao “amor” principal sem se simpatizar.
E finalmente o relacionamento de Elisa Esposito (Sally Hawkins) e A Criatura, com sua inocência cativante, um vínculo que ata o espectador em sua linha afetuosa, o verdadeiro significado da palavra amor no seu sentido mais bucólico e absoluto. É impossível não se apaixonar por Elisa, por seu amor pela Criatura ou pelo relacionamento entre eles. Eles refletem a verdadeira felicidade que esse sentimento evoca, revelando que para alcançá-la não importam as diferenças, os déficits, os problemas, o amor é algo puro que transcende os limites de qualquer obstáculo, sendo otimizado pelos relacionamentos anteriormente citados e a genuinidade perceptível entre os dois.
Logo, o amor realmente pode ser uma doença mental perigosa que é capaz de trazer benefícios tão grandes quanto prejuízos. Querer se encontrar no outro não é algo saudável e muito menos recomendável, contudo a abordagem utilizada no filme é tão autêntica que fica difícil de não querer acreditar nesse sentimento eloquente, a fim de defini-lo e compreendê-lo de uma vez por todas. Afinal, quando tenta-se estabelecer uma relação em contraponto ao titulo do longa, vê-se uma dualidade formidável, a de que a forma da água possui o mesmo formato que o amor: nenhum e todos, sendo impossível determiná-los.
“Impossibilitado de perceber
Sua forma, encontro você à minha volta.
Sua presença me enche os olhos com
Seu amor, acalma meu coração, porque
Você está em todos os lugares.”
Apaixonado por cinema, amante das ciências humanas, apreciador de bebidas baratas, mergulhador de fossa existencial e dependente da melancolia humana.