Do terror para o comum, e não o contrário.
A estreia do jovem diretor Jordan Peele no terreno dos grandes começa com Corra!. A indicação da fantasiosa obra de suspense para a maior premiação da sétima arte já era uma especulação clara do público. Saindo do terreno confortável de sucessivas linhas repetitivas crescidas em filmes de terror modernos, concebeu-se aqui para só explodir pouco tempo depois a polêmica do pós-terror. O roteiro original escrito por Peele para só depois cair em sua decisiva direção foi bastião para uma histórica nova abordagem conceptiva para o que realmente assusta no audiovisual. O atípico desenrolar da trama deixa claro que não apenas o roteiro é curvo e autêntico, como também preciso e inovador. Se a previsibilidade arranha a obra em algum momento é em sua exemplar contribuição final. Verdadeiro, cruel e tenebroso. Assim é Corra! em cada linha e resolução de conflito arrastada.
A legibilidade traduzida pelo roteiro aparenta na sua introdução uma decepcionante sensação de clichê no espectador já familiarizado com o gênero. A sensação, embora equivocada, mostra o que Peele tenta firmar desde o princípio: uma quebra de regras vestida de uma grande paródia. Ninguém esperaria que fosse tirado disso uma simplificação tão genial e assustadoramente bela de uma história que facilmente seria um conto. Curta como aparenta, se arrasta no roteiro do diretor com uma inacabada sensação de angústia. Há cenas em Corra! que pedem uma resiliência covarde dos mais assíduos consumidores do real suspense. E muito embora seja algo aparentemente particular de ser visto, não passa realmente perto disso. Essa sensação é generalizada no público, e a indicação notou isso com precisão.
Chris (Daniel Kaluuya) é o protagonista dado pela bandeja de Peele como o mártir de sua assustadora subversão do gênero. Embora assuma o papel principal, por diversas vezes o protagonismo de Kaluuya some e dá lugar a um personagem sem uma definitiva personalidade estável, bem como qualquer personalidade possível. A inexpressão da persona no primeiro ato é impossível de ser ignorada e incomoda os que procurariam na qualidade geral da trama um personagem centrado ou totalmente desequilibrado numa ”mistureba” dessas que o gênero sempre apresenta. Nenhuma das duas coisas brota aqui. Peele força um personagem novo, sem objetivo grandioso ou trajetória admirável. No fim, Chris é só um cara normal. No entanto, normal o suficiente para que a atuação de Kaluuya se desse o direito de tirar-lhe a alma completamente, tornando-o uma casca vazia que se alimenta progressivamente do roteiro. Somente no final temos alguém de carne e osso. O boneco criado por Kaluuya desvanece genialmente pela cura do roteiro.
A apresentação de Corra! é previsivelmente (embora não frustrante) focada em construir o que será desconstruído por um plot criativo que materializa um grande e instigante mistério em sua trilha de migalhas. Enquanto ironicamente vemos tudo pelos olhos de Chris, o particular se torna perturbador a medida que avançamos mais e mais para o íntimo da família Armitage. A visita que se estende em sua descoberta durante toda a primeira metade do filme serve como consolo para o clímax oferecido na segunda etapa. O equilíbrio estrutural escrito por Peele se preocupa em convergir em um grande sentido final aliado à reviravolta surpreendente. Os espasmos assustadores dos personagens em contar a verdade sobre tudo o que está aparecendo são perturbadores, mas não gritam mais alto do que os próprios descuidos propositais deixados pelo diretor em cada personagem isolado. Coadjuvantes e antagonistas são tão misturados aqui quanto a mente de Chris é confundida pelas suas assombrosas descobertas.
A carga imponente de Rose (Allison Williams) para a narrativa é fundamental. Talvez o destaque maior do filme inteiro seja visto através de seu cinismo para conceder algumas respostas sobre a sua família. Se questionada além disso, nega e dissimula situações para a sua própria cobertura. É estranha a construção vagarosa dada pela filme aos antagonistas. Embora cada um se revele em certo momento como alguém que sabe alguma coisa sobre o que acontece na grande casa interiorana, existem os que compactuam diretamente com aquilo. Para os personagens primários da trama, sobram as diretas acusações do público. Para os secundários, os apontamentos mais impressionantes ainda reservados por Peele para a audiência mais lenta na descoberta da verdade. Essa tal verdade, por sua vez, é entregue sem pudor quando não consegue mais se espremer com o suspense. O surpreendente aqui é que esse sacrifício dá lugar a mais angustiante etapa conclusiva do gênero no ano de 2017.
O roteiro de Peele consegue pecar em suas pinceladas bem pontuadas somente pela dosagem do alívio cômico. Embora grande paródia que vaza de Corra! seja genial em sua originalidade, é também irresponsável com algumas personagens laterais. Rod (LilRel Howery) sustenta sem muito esforço toda a lateralidade cômica que Peele preservou de sua talentosa construção anterior. Saturada como é feita essa injeção no roteiro, compromete-se a seriedade dele enquanto dá o teor mais liberal para toda a estrutura. Peele aposta em suavizar para não arriscar salgar demais, mas o tiro sai pela culatra. A ambição de um grande suspense dá lugar a algo mais infantil em várias instâncias da aparição do personagem. Na finalização da trama, a persona de Rod se torna quase cartúnica em seus comentários ácidos sobre o quanto toda aquela situação escalou em algo terrível acontecendo com o seu amigo mais próximo. A divisão de opiniões é esperada, mas não ignorada em Corra!. Os personagens têm funções cabíveis, mas quase sempre desnecessárias em sua execução exagerada ou pálida.
A conclusão de 2017 com Corra! mira na promessa de Jordan Peele para a recente anunciação de sua tentativa de reinventar The Twilight Zone para as grandes telas. A trama é a prova cabal de que a criatividade e a inventividade ainda são uma promessa para a massa de destaque que vale nas grandes premiações. Para o caráter de legado do gênero impressionista de terror e suspense, uma exemplar nomeação para o que um grande roteiro é capaz de criar com poucos recursos e uma visão diferenciada. Caminhando entre o ousado e o clichê, o filme de Peele fica com a indicação de melhor roteiro original com o justíssimo critério de inovação. Para o público, uma grande obra eternizada com atemporalidade admiravelmente perturbadora. Do comum para o terror, e não o contrário.