Crítica | Amnésia (Memento) [2000]

Nota do Filme :

Amnésia foi o longa que atraiu atenção ao diretor Christopher Nolan. Tem uma premissa simples, mas que é, por si só, interessante. O que nos vem à cabeça ao lembrarmos do filme, porém, é a forma de apresentação. Amnésia ficou conhecido como aquele filme que se passa “de trás para frente”.

 

Pois bem, na realidade temos duas linhas temporais no filme: a principal, colorida, em ordem cronológica contrária e a secundária, em preto e branco, em ordem cronológica regular. Assim, a obra não se passa, exclusivamente, de trás para frente, de modo que o filme não termina no começo, mas sim no meio.

Nesse ponto, temos a razão pela qual o longa e o diretor receberam reconhecimento. Aquilo que poderia ser meramente uma artimanha narrativa se trata, na realidade, de algo decorrente do próprio enredo.

A ordem das cenas foi o meio encontrado por Christopher Nolan para fazer com que o telespectador se sinta na pele do protagonista. Quando a cena começa, nos sentimos como Leonard (Guy Pearce). Buscamos, na tela, informações que nos digam o que aconteceu/o que deverá acontecer.

 

 

O requinte técnico é complementado pelas cenas em preto e branco, essas em ordem cronológica. Assim, temos cenas no formato tradicional, o que impede que o filme se torne cansativo. Nessas cenas ainda recebemos as informações que precisamos sobre o passado de Leonard, de modo a compreender a sua motivação.

Tratamos, agora, do personagem principal. Leonard, com um problema de perda de memória recente, afirma que mesmo sem sua memória, se utiliza de fatos para manter a sua vivência possível. Por diversas vezes afirma que a memória é um instrumento falho, especialmente se comparada aos “fatos”[1].

Entretanto, no decorrer do filme, vemos que os fatos que Leonard leva em consideração são decorrentes, muitas vezes, de terceiros. Assim, a informação pode ser comprometida, uma vez que cada pessoa possui seus próprios interesses. Por não possuir a sua memória para balancear as informações recebidas, sua realidade pode ser facilmente alterada e Leonard sequer irá notar.

Em certo ponto do filme, por exemplo, Leonard está prestes a fazer uma nova tatuagem (reservada para os fatos mais importantes), quando atende à ligação de um personagem até então desconhecido. No decorrer desse diálogo, o personagem desconhecido convence Leonard, fazendo com que ele altere sua tatuagem.

 

 

Assim, a partir daquele momento, Leonard entende aquela tatuagem como um fato absoluto e, após sua memória “reiniciar”, não poderá mais contestar sua veracidade. A situação se torna extremamente problemática, uma vez que Leonard não tem como saber se esse personagem é de fato confiável.

Aí reside a falha em seu sistema. Por mais que reconheça sua própria escrita e responda apenas a ela, sua falta de memória o torna facilmente manipulável. Esse fator é demonstrado inúmeras vezes no decorrer do filme. Todos que o encontram se utilizam de sua condição em seu proveito. Vejamos:

Teddy (Joe Pantoliano) o utiliza como assassino, se livrando de traficantes enquanto aproveita enriquece; Natalie (Carrie-Anne Moss) se vinga pela morte de seu namorado e, faz com que ele se livre de alguém que a estava perseguindo; Burt (Mark Boone Junior), recepcionista do motel no qual Leonard se hospeda, faz com que ele pague por dois quartos e; Leonard, para se vingar de Teddy, manipula sua própria realidade, distorce propositalmente seus “fatos” para se convencer a assassina-lo.

 

 

Trata-se aqui do conceito de “narrador não confiável” elevado ao máximo. Não só o telespectador não confia – ou não deveria confiar – no narrador, como o narrador acaba sendo responsável por se enganar e adentrar cada vez mais em sua própria fantasia.

Tudo que Leonard faz visa imprimir sentidos às suas ações, à sua vida. Por mais que saiba que não se lembrará caso concretize seu objetivo, acredita que a sua esposa (Jorja Fox) merece ser vingada, independentemente de suas memórias[2].

Temos aqui um personagem que jamais conseguirá evoluir. Ele se encontra preso à sua própria forma pois não consegue formar novas lembranças e, assim, não consegue superar o assassinato de sua esposa e seguir a sua vida[3].

Normalmente, um personagem que não evolui é um sinal de um roteiro mal desenvolvido. Não há conflito ou desafio, e, desse modo, o protagonista termina o filme sem resolução. Aqui, porém, vemos o contrário. A não evolução do personagem é inerente à patologia de Leonard.

Amnésia é constantemente lembrado como um importante filme para a indústria cinematográfica, nos fazendo lembrar que técnicas narrativas não podem ser usadas como meras artimanhas, mas na realidade devem decorrer da trama, de modo a aumentar ao máximo a experiência do filme.

 

[1] “Memory can change the shape of a room; it can change the color of a car. And memories can be distorted. They’re just an interpretation, they’re not a record, and they’re irrelevant if you have the facts.”

[2] “My wife deserves vengance. Doesn’t make a difference whether I know about it. Just becuase there are things I don’t remember doesn’t make my actions meaningless. The world doesn’t just disappear when you close your eyes, does it?”

[3] “How am I supposed to heal if I can’t… feel time?”