A monstruosidade mágica do diretor Guillermo Del Toro

Quando pensamos no diretor e roteirista mexicano Guillermo Del Toro, é inevitável não relacioná-lo com mundos que desafiam as ordens naturais e seus limites, e que desbravam os obstáculos impostos pela realidade, proporcionando ao diretor e ao espectador uma imaginação ilimitada e aprofundada. À primeira vista, até pode parecer uma forma pejorativa de defini-lo, como se fosse alguém preso em um mundo irreal e até um pouco infantil. Afinal, monstros e contos de fadas sobrenaturais são coisas que encantam mentes de crianças na hora de dormir.

No entanto, conforme suas obras vão se desenrolando aos olhos do receptor, entendemos a profundidade de enxergar o universo e personagens criados por ele como uma “metáfora viva”, como ele próprio afirma, do que acontece no mundo real e dentro de cada ser humano, de modo que torna impossível a não identificação em algum nível com a obra. Ao se apropriar da arte audiovisual, das suas ferramentas, das inúmeras possibilidades e técnicas de filmagem, Del Toro consegue, ao lado de seus animais místicos e reinos subterrâneos, firmar a sua identidade e visão autônoma sob o mundo de uma forma totalmente diferente do convencional.

Sua perspectiva com relação à realidade, embora fantasiosa, é capaz de penetrar mais a fundo nas problemáticas, como violência, relações familiares, questões sociais, tantas vezes retratadas em filmes, do que aqueles que logo nos primeiros minutos já expõem o principal gancho da obra e no decorrer da trama não apresentam-no com tanta desenvoltura. Em seu cinema minucioso e criativo, o que pode parecer banal, esgotado, em outros, ganha uma nova dimensão. O diretor vai até as profundezas dos medos mundanos e é assim que ele consegue estabelecer uma ponte entre o espectador e a sua imaginação.

Em “A Forma da Água”, por exemplo, filme ganhador do Oscar de 2017, o ponto de partida é simples: a solidão de uma moça muda trabalhadora que, apesar dos pesares, ainda mantém uma esperança de encontrar um lugar ao lado de alguém que a ama como ela é. Quantos filmes não retrataram histórias parecidas? Inúmeros, mas ao passar pela visão de Del Toro e, por consequência, pelo monstro da vez, a narrativa consegue parecer até algo nunca visto nas salas de cinema. Por meio dessa fantasia, o diretor conseguiu abordar a corrida tecnológica no período da Guerra Fria, crenças místicas, machismo e, acima de tudo, amor e empatia pelo próximo, por mais diferente que seja.

No “Labirinto do Fauno”, um dos seus títulos de maior sucesso lançado em 2006, o mexicano também se utilizou do mesmo padrão fantasioso: uma princesa de um submundo vira o norte da narrativa que explora a situação da Espanha pós guerra e todas as questões sociais da época. Ao mesmo tempo que o público vai entrar em contato com esse passado histórico e social, ele também vai se encantar com fadas, faunos, homens-peixes, livros mágicos e todos os outros ingredientes que compõem esse universo que, muitas vezes por conta das escolhas artísticas do diretor, torna-se muito mais real do que a realidade em si. 

Embora diferentes entre si, todas as suas obras carregam aspectos que validam o cinema de autoria criado pelo amante dos monstros. A atenção aos detalhes, a câmera em movimento – responsável por direcionar o olhar do espectador -, as cores simples e brilhantes, tudo isso faz com que a conexão com essa versão da realidade consiga existir. Guillermo Del Toro se utiliza de escolhas artísticas e técnicas presentes em diferentes gêneros cinematográficos para criar o seu próprio, indo contra a ideia de que cada filme deva pertencer à uma categoria.

A transição entre a fantasia e o real existente não só na liberdade direcional como também no roteiro faz com que o filme seja capaz de caminhar entre os gêneros do drama, romance, comédia, fantasia, ficção e, por vezes, histórico. Em seu trabalho, assim como na sua vida, o diretor se recusa a ficar dentro de uma caixinha criada pela indústria, preferindo se colocar em um “momento de desdobramento de um gênero consolidado ou ainda inexistente naquilo que poderia vir a frutificar em um gênero novo” (p.25) e criando, portanto, a sua própria verdade no mundo e na indústria cinematográfica. 

O cinema de Del Toro é, sem dúvidas, marcado por muita sensibilidade e clareza, demonstrando a verdadeira intenção da obra e, por consequência, do diretor. Além do conteúdo do roteiro, a encenação é essencial para que o cineasta consiga transparecer exatamente a visão que tem para a mensagem daquela obra. Como afirma o crítico da Cahier du Cinema Ariel Schweitzer, são os detalhes da mise en scene que demonstram a intenção do diretor, e Del Toro consegue realizar esse feitio sem deixar de caminhar ao lado da estética e da ética.

Seus planos, na maioria das vezes, são filmados para transmitir elementos que realmente agregam à sentimentalidade daquele universo em questão, sem que haja exploração imagética apenas com o objetivo de criar uma fotogenia do momento – o que resultaria, neste caso, em uma pornografia do plano devido à explicitude do olhar e talento do diretor ao invés do que deveria ser, na maioria das vezes, mais importante na direção: a história. 

Fica muito claro que Del Toro não se utiliza de certos momentos da trama, ultrapassando os limites éticos presentes na morte e na sexualidade, quando ele opta, por exemplo, por filmar de modo convencional a morte à queima roupa de um camponês pelas mãos de um capitão em “Labirinto do Fauno”, demonstrando de forma sucinta a frieza do ato retratado, sem peripécias. Ou então quando retrata a primeira relação sexual entre Elisa e o homem-peixe em “A Forma da Água” como se fosse uma pintura, com enfoque no olhar e no sentimento dos personagens, ao invés de focar na estranheza que seria caso isso acontecesse no mundo real.

São tantos exemplos que seria impossível listar todos; sua única preocupação é representar da forma mais honesta possível o que se passa dentro de cada personagem. Claro, não há dúvidas de que seu estilo de direção e sua autoria está presente em cada plano que se destaca aqui e ali durante as duas horas de filme. No entanto, é essa sutileza do implícito que transforma-o em sublime e faz com que o espectador não receba aquilo como algo imposto e, portanto, forçado ou desrespeitoso com a “verdade” retratada. Sem perder sua marca registrada, Guillermo está sempre se renovando.

Em seu novo filme, intitulado de “O Beco das Almas Perdidas”, um remake do clássico noir da década de 40 e cujo lançamento está marcado para dezembro nos Estados Unidos, o diretor explora um mundo lúdico, periférico e espinhoso de uma comunidade circense. Não há como saber o que será exatamente explorado nesse novo trabalho, mas há a certeza de que a história de um jovem vigarista que se envolve com uma psiquiatra corrupta para extorquir a audiência de seus truques de mágica tem a miríade que sempre consegue extrair o olhar marcante e singular de Del Toro: jogo de poder, questões sociais, nichos ímpares, personagens peculiares, e, principalmente, a quimera que permeia todo a sua filmografia.

Quem o conhece, já espera que tenha a delicadeza simbólica dos detalhes, do movimento de câmera, dos enquadramentos, da fantasia que transforma a mais pura banalidade em uma realidade insólita não importa qual seja o ponto de partida da narrativa: um romance, um sonho infantil ou uma crença folclórica. Afinal, em seu cinema, a fantasia importa tanto quanto a realidade e os seus monstros são “um caminho fundamental para a minha verdadeira identidade”.

Referências:

DE LUNA FREIRE, Rafael. Carnaval, Mistério e Gangsters: O filme policial no Brasil, Volume 1, 2011.

RIEFE, Jordan. Guillermo del Toro: ‘I love monsters the way people worship holy images’, The Guardian, 2017