Oriundo do cinema mudo, Alfred Hitchcock (que dispensa maiores apresentações) sempre se apoiou nas imagens para contar as suas histórias. As suas narrativas, extremamente visuais, acabaram criando obras primas que fizeram imenso sucesso de público. As que não fizeram tanto sucesso, tornaram-se clássicos e são estudadas por seus virtuosismos técnicos e permanecem vivas graças ao seu tom e simbolismos. Ou tudo isso junto. Entretanto, existem obras que não gozam do mesmo prestígio, apesar de suas qualidades indiscutíveis. A lista abaixo, portanto, tem a intenção de elencar algumas dessas obras pouco lembradas, mas tão geniais quanto as suas primas mais famosas.
Um Barco e Nove Destinos (1944)
No auge da segunda guerra mundial, Hitchcock produziu esse filme e gerou certa polêmica por jogar os seus personagens num dilema moral deveras interessante: quando um navio aliado é afundado por uma embarcação nazista, oito sobreviventes se refugiam em um bote. No meio do caos, acabam resgatando um alemão que pode ser o capitão da nau alemã que os afundou. O que fazer com o homem que teria provocado aquela situação catastrófica?
“Um Barco e Nove Destinos” foi um fracasso de crítica e de público. É um flerte do mestre com um cinema político mais sério, provocador e que tem um subtexto que pretende ser discutido. Trata de um assunto delicado, com um rigor cênico impressionante: o filme se passa todo no bote salva-vidas. É surpreendente como o ritmo não arrefece, pois o roteiro, numa decisão brilhante, resolve criar um outro dilema: aquele que em tese deveria morrer, pode ser a salvação dos náufragos. “Um Barco e Nove Destinos” é um dos filmes mais obscuros do mestre e, curiosamente, um dos mais virtuosos, sérios e equilibrados de toda a sua filmografia. Merece ser redescoberto.
Correspondente Estrangeiro (1940)
Depois de sua carreira finalmente deslanchar na Inglaterra, Hitchcock foi levado para Hollywood pelo produtor David O. Selznick (do monumental “…E O Vento Levou”). A parceria, apesar de ter rendido ótimos filmes, era extremamente conflituosa. Assim, Selznick acabou “emprestando” Hitchcock para outros estúdios (na Hollywood clássica, esses empréstimos eram comuns, uma vez que os diretores “pertenciam” aos produtores). De um dessas transações nasceu “Correspondente Estrangeiro”: um thriller de espionagem excitante que, apesar do seu sucesso inicial – chegando a ser indicado a 6 Oscar – não se tornou tão famoso quanto “Rebecca – A Mulher Inesquecível”, que Hitchcock dirigira para Selznick no mesmo ano.
No longa, um jornalista americano é enviado ao continente europeu para tentar uma entrevista com um proeminente diplomata holandês. Um assassinato acaba acontecendo e joga o cínico jornalista numa complicada trama envolvendo espiões e a iminência da guerra. Apesar do elenco sem as estrelas de primeira grandeza da época, Hitchcock criou um suspense de primeira (inclusive superior a Rebecca), fotografado num P&B expressionista e repleto de reviravoltas que culminam num clímax espetacular a bordo de um avião em queda livre.
Festim Diabólico (1948)
Outra maravilhosa demonstração de virtuosismo técnico e cênico de Alfred Hitchcock, “Festim Diabólico” tem uma trama, digamos… diabólica: dois jovens rapazes resolvem matar um colega de faculdade porque querem provar a si mesmos que existem crimes perfeitos. Numa virada inacreditavelmente macabra, resolvem dar uma pequena festa onde os petiscos serão servidos em cima do baú que guarda o corpo da pobre vítima. Aqui voltamos a um ambiente confinado, a exemplo de “Um Barco e Nove Destinos”: sai o bote salva-vidas, entra o apartamento dos assassinos.
Com “Festim” Hitchcock foi ambicioso: queria filmar tudo num grande plano sequência. Falhou. Tentou, então, outra forma de minimizar ao máximo os cortes. Foi criando um cenário que se movesse, de modo a permitir a fluidez das câmeras e dos atores. Dessa forma, não são as câmeras que movem, mas o set de filmagem! É possível contar não mais do que 10 cortes, num filme que tem 80 minutos de duração. Tecnicamente brilhante, “Festim Diabólico” ainda expõe uma tensa dinâmica existente na relação entre os dois protagonistas, evidenciando, inclusive, um subtexto homoafetivo, algo que passou despercebido à época. Ironia e humor negro num brilhante jogo de gato e rato tornam “Festim Diabólico” um dos melhores e mais experimentais filmes do mestre do suspense, ainda que não tão famoso quanto outros. Curiosamente, “Festim” vem sendo reconhecido por um grupo cada vez maior de cinéfilos e admiradores de Hitchcock, mas ainda é comum perceber a sua ausência em lista dos melhores trabalhos do mestre do suspense. Obrigatório para quem vai começar a enveredar pelo cinema do mestre do suspense.
O Homem Errado (1956)
Em “O Homem Errado”, Hitchcock visita um tema recorrente em sua filmografia: o do homem comum atirado numa situação da qual não tem controle ao ser acusado de algo que não fez. No caso, temos um músico (vivido por Henry Fonda) que é confundido com um ladrão. Preso, ele tentará provar a sua inocência.
Essa produção de 1956 acabou sendo esmagada entre os sucessos de “Janela Indiscreta” e “O Homem que Sabia Demais” (lançados em 1954 e 1956, respectivamente) e representa uma mudança radical no tom dos filmes do mestre: trata-se de um drama sério, e até sombrio, com zero humor, conduzido de maneira sóbria, despida de qualquer arroubo visual e carregado nas tintas do pessimismo. É um dos trabalhos mais pessoais de Hitchcock e talvez seja o que possui o seu melhor trabalho na direção de atores. Henry Fonda imprime ao seu simplório Manny uma dramaticidade profunda e tocante, enquanto a Rose de Vera Miles é devastadora. Praticamente desconhecido, sendo raramente citado até pelos fãs do diretor, “O Homem Errado” é a tradução em celulóide das neuroses do seu realizador e, enquanto cinema, se revela uma obra-prima.
Os 39 Degraus (1935)
Antes de emigrar para os EUA, Hitchcock deixou uma marca indelével no cinema inglês. Dentre tantas obras especiais, “Os 39 Degraus” é um dos destaques. Aqui, um jovem turista chega a Londres e logo se vê envolvido numa intrincada trama de espionagem e assassinato.
Apesar de alguma inverossimilhança no roteiro, que existe como justificativa para a criação de sequências de ação e suspense eletrizantes, “Os 39 Degraus” representa uma sofisticação na mise em scene de Alfred Hitchcock, com planos mais elaborados e um exercício de técnica salutar, resultando numa obra nunca tediosa e repleta de surpresas.
A Tortura do Silêncio (1953)
Apesar de vários longas bem-sucedidos financeiramente, e obras-primas aclamadas, na primeira metade da década de 40, Alfred Hitchcock enfrentou uma maré de azar que começou em “Agonia de Amor, de 1947, e encontrou o seu ponto alto com o fracasso colossal de “Sob o Signo de Capricórnio” de 1949. Essa onda perdurou até o limiar da década seguinte tendo “Pacto Sinistro” de 1951 como o ponto de virada. Mesmo sendo posterior a “Pacto”, o que conferiria ao mestre do suspense certa confiança por parte do público, “A Tortura do Silêncio” não encontrou nada a não ser desprezo.
Aqui, Hitchcock parece se debruçar sobre os assuntos que martelavam a sua cabeça, como culpa e religiosidade. Na história, o Padre Logan ouve a confissão de um assassino, ficando numa encruzilhada ética: deveria ele testemunhar contra o assassino ou manter o segredo de confissão, como roga a sua crença? “Tortura” levanta discussões densas e divisivas, o que pode explicar a fuga de um público que procurava algo diferente do tom sério e menos “divertido”, mesmo com toda a sofisticação pictográfica tão característica do diretor. Estrelando, temos um Montgomery Clift no auge da carreira.
Trama Macabra (1976)
“Trama Macabra” é o derradeiro filme do mestre, e também um dos seus mais subestimados trabalhos. Produzido numa época em que o cinema se recuperava do choque realista provocado por “Tubarão”, esse suspense de humor negro parecia deslocado no tempo, Isso porque, Hitchcock, já com a saúde bastante debilitada, não abria mão do conforto do cenário, evitando gravar externas. Assim, o uso excessivo de chroma key, entre outras coisas, quase prejudicou a experiência de uma plateia que estava se tornando cada vez mais cínica e pouco paciente com a narrativa antiquada de um velhinho doente.
Em “Trama” temos basicamente duas histórias distintas em rota de colisão: de um lado, temos um casal de criminosos sequestradores que rapta pessoas para exigir resgates em joias. Do outro, um segundo casal, agora formado por um taxista abobalhado e uma falsa vidente, encarregada de encontrar o herdeiro de uma velha senhora rica. A despeito do tom “artificial” que Hitch impôs, “Trama Macabra” é um suspense deliciosamente divertido, recheado com o seu finíssimo humor inglês. As reviravoltas são inteligentes e o filme se revela uma grande e despretensiosa brincadeira. Poucas vezes o canto do cisne de um diretor foi tão delicioso.