Crítica | Roda Gigante (Wonder Wheel) [2017]

A filmografia de Woody Allen entrega sempre um corriqueiro romance galgado nas impraticidades de uma rotina desvairada ou de um comodismo desses mais casuais. O que quebra a noção de revisita de modelos já gastos na aparência do diretor é a roupagem. Talvez o novo melhor exemplo disso nos últimos anos tenha sido entregue em Roda Gigante. A dramática solidez com a qual o diretor antes manipulava cores, diálogos e cenas imersivas dá lugar a uma teatral história sobre alguns dos temas já debatidos em filmes passados. A forma final como aparenta ter sido concebido mostra que não foi vomitado ou escalado para um exercício de Allen, trata-se de um aditivo técnico mais moderno. Um estudo sobre ambientação, luz e vida. A fotografia, componente importantíssimo para o trato final das cenas internas mais permeáveis, dá à linha de diálogo ordinária uma flexibilidade única. Em um momento, há uma fala, em outro, uma omissa distinção entre uma face e uma cor que completam perfeitamente o que deveria ou não ser dito. O longa acontece e salta para fora da tela ao seu término graças a isso.

Somos apresentados a uma Nova Iorque que pigarra com a fumaça distante enquanto a límpida Coney Island majestosamente cai em um silencioso esquecimento. O princípio de anos que destruiriam a cultura de revisitação criam a primeira expectativa que Allen quer causar em seu cenário. Algo que raramente acontece nos filmes do diretor com tamanha excitação, mas que aqui não só assume a guia da história, como também a conta por entre cada veneziana  ou vitrine limpa de um café. É com a vitalidade dada ao ambiente que o som se desenvolve como componente principal aliado aos personagens impuros e totalmente presos à alegorias socializadas em cena com passado e futuro muito bem alinhados. Para a feliz Coney Island, sonhos e desilusões orbitam com tanta força e impiedade quanto a imponente e icônica roda gigante.

Acompanhamos um núcleo de personagens inicialmente conflituoso e mais tarde controverso e revirado ao avesso. Desejo, sonho, paixão e esperança se confundem dentro do imparável e indiferente mundano. Há responsabilidades que sepultam vontades, medos que dilaceram discursos. Aqui há uma experimentação por Allen do que são realmente feitas as paixões, mas o que se acerta é no significado do zelo. A vida acontece, mas a manutenção não. Há uma funcionalidade dada a todas as coisas e seres na tentativa de Allen de representar visualmente uma tragédia previsível, embora conquistadora. Não existem reviravoltas impressionantes, um clímax inesperado ou alimentado durante a obra ou uma grande mensagem final. Há aqui o óbvio escrachado dentro do acaso e do viver. E ambas as coisas atacam os que sonham. Ataca a todos nós.

Há uma imprevisibilidade discutível no roteiro do filme. Ainda que a trama se esforce para manter um padrão de qualidade elevado em relação a filmografia do diretor, existe menos dele e mais de algo modernizado e retrô. Há uma experimentação declarada com a musicalidade certeira com a ambientação extravagante e conceituada. Embora a parte sonora seja um trato conhecido do executor de Roda Gigante, a parte que lhe cabe com notoriedade não realça nada além das transições. Com a responsabilidade de capitular essas etapas de roteiro abertas, a música é a primeira ferramenta usada na construção teatral com que se forma o longa. A maioria das conversações se relaciona com algo externo e sempre invasivo. Uma música de fundo, uma gritaria, telefonemas, gritos, traumas, incompreensões. As razões salteiam na tela e atingem o espectador como um rombo em sua própria noção do que é viver uma vida fora de uma padrão.  E demonstra-se aqui o pior a partir de um questionamento: o quão forte somos para falhar?

Somado a o que o roteiro apresenta como um lateral alívio para as cenas principais, existem nos pormenores de Richie (Jack Gore) uma formatação única para o quão cruel o diretor pode ser em sua maneira de contar a verdade a partir do banal. Há na criança uma ruptura do que sobra do resto da trama. Se todos são presos a empregos e delírios frustrados (como são representados os sonhos), há no incendiário garoto um grito para o imprevisível e o eventual. Allen coloca aqui uma peça cínica e improvisada dentro do que se vê para a trama como forma de acentuá-la na própria desorganização. Indo tudo para o abismo como parece ir com a família, o desabrigo de todos é bem previsível no fim disso. O que sobre além de algo para queimar em algum lugar no meio da gritaria? O caos, desimportância e cruel fome do mundo pelas pessoas já existia bem antes do fósforo riscar a caixa sem aviso prévio.

A convergência de histórias é um destaque para a parte estrutural da trama. O núcleo principal de personagens se desenvolve a partir de um único e desafiador conflito que é derramado para todas as demais linhas de relações. Uma história simples, mas contada sob uma ótica técnica interessante e que cobra da qualidade final com o quanto impressiona. Roda Gigante não é o melhor de Allen, mas é o seu único para os últimos anos. Há uma falta de potência em cada cena, presunção ou grande amor vivido. Tudo é bastante mecânico, embora bem ambientado e trilhado de uma profunda história já preparada para cada figura dentro do longa. Aberto e complexo como aparenta, não soa tão funcional na prática. A trama conserva ainda uma emergencial rapidez da periodicidade do diretor. E muito embora não seja descuidada, é só morna e pouco consistente. O lado artístico impressionante, contudo, suaviza todo o desvario do diretor nestes quesitos, mas não os resgata da completa perdição em sua qualidade final.